A vida contada em livro da mãe de uma superestrela pop pode parecer previsível quanto à estrutura: o foco mais na trajetória da filha do que na da mulher que a trouxe ao mundo. Quem espera essa abordagem em Matriarca — A autobiografia de Tina Knowles tem grandes chances de se decepcionar. Beyoncé e sua irmã, a também cantora Solange Knowles, só aparecem no 15º capítulo dos 53 que compõem as 536 páginas da obra.
Mesmo assim, aos caçadores de fofocas e revelações bombásticas sobre as duas celebridades, esqueçam. E, Matriarca é muito bom exatamente por isso. Lançado mundialmente no final de abril, é o relato comovente e intenso de uma jornada de vida marcada por tragédias, turbulências profissionais e amorosas, mas também por determinação, perseverança, audácia, força de vontade e vitórias. Aos 71 anos, Tina busca na ancestralidade referências para construir sua própria narrativa — e o faz como ninguém.
A autora escreve com sabedoria e emoção, quase em tom poético. "Você é Celestine', ela disse. Agachou-se para afastar o cabelo do meu rosto e arrancar folhas das pernas do meu pijama. 'Como minha irmã e minha avó.' E ali, sob a nogueira, como fez inúmeras vezes, naquele dia, minha mãe me contou histórias das mães e filhas antes de mim. A casa de Derouen, seu nome de solteira, é uma linhagem matrilinear tão digna de memorização quanto as dos mitos gregos que eu aprenderia mais tarde”, diz.
E conclui: “Eu sou filha de Agnes, que era filha de Odilia, que era filha de Célestine, que era filha de Rosalie. Minha mãe não tinha os detalhes típicos dos registros de historiadores e genealogistas. Ela tinha o que havia sido passado para ela, que é como essas mães mantiveram suas filhas contra todas as probabilidades”.
O ponto de partida é a infância da menina precoce e travessa que cresceu na pequena ilha de Galveston, na costa do Texas, na década de 1950. Última dos sete filhos de Agnes Beyincé, registrada como Celestine Ann Beyincé, desde pequena, Tina teve de conviver e suportar a violência da segregação e do racismo.
Em uma passagem, ela conta que foi punida fisicamente pelas freiras da escola da igreja onde estudava e que mantinham sua família em uma espécie de servidão em troca de educação. Em outra ocasião, aos 14 anos, Tina foi submetida a um exame médico invasivo, equivalente a abuso sexual, nas mãos de médicos brancos.
Os Estados Unidos da infância e juventude de Tina separavam negros e brancos em diversas áreas — nas escolas, transportes públicos, restaurantes, lojas e até cemitérios. Quando tinha 21 anos, ela quase morreu ao ser arrastada para o mar por uma correnteza na perigosa praia destinada a pessoas “de cor”.
Mas nem tudo eram espinhos. Ela cresceu em meio a uma imensa família musical, ao som dos discos de black music da cultuada gravadora Motown e das ondas do mar que quebravam próximas à sua casa, como lembra.
A saída de casa
No entanto, à medida que começa a entender como o preconceito racial e as limitações impostas aos negros desafiavam a possibilidade de ter um futuro, Tina se colocou a missão de deixar sua cidade cercada de mar.
Como uma rendeira, ela tece a história de sua vida com a costura de experiências boas e ruins. Pela primeira vez, Tina fala sobre o casamento de 31 anos com o executivo da música Mathew Knowles, repleto de altos e baixos, marcado por traições.
Antes de tratar das lutas e das dificuldades do início das carreiras de Beyoncé e Solange, Tina relata como o empreendedorismo na moda se tornou a forma de sustentar a família e manter seus membros unidos — nesse sentido, o título do livro não poderia ser mais apropriado, pelo protagonismo familiar que ela alcançou. Em nome da família, acima de tudo, encontrou maneiras de superar os traumas, o luto e o câncer, em 2024 – uma das revelações de sua biografia.
Tina faz questão de se aprofundar no que descreve como os desafios da “maternidade negra” em um mundo que parecia não ter sido feito para suas filhas. Ela compartilha uma curiosidade sobre o erro no registro civil que deu origem ao nome da sua filha, Beyoncé. Ela considerava "esquisito" seu nome de solteira porque, em sua família, alguns tinham o nome "Beyoncé" e outros tinham "Beyincé".

No seu caso, não houve correção porque, em certa época, os negros não recebiam certidões de nascimento. Por isso, a decisão de dar o nome "Beyoncé" à filha foi uma homenagem ao próprio nome de solteira de Tina e, também, uma forma de reconhecer a história da família.
Conta também como criou Beyoncé e Solange, destaca a importância de protegê-las e ensiná-las a se defender. Cita ainda a relação complexa entre Beyoncé e Solange, que já foi marcada por conflitos e a necessidade de intervenção para unir as filhas. Beyoncé, afirma a mãe, era tímida e sofreu bullying, mas aprendeu a ser forte ao sair em defesa dos amigos.
Tina aprofunda momentos relevantes da trajetória de Beyoncé no universo da música. Desde as competições de canto e dança em que participou na infância até chegar ao estrelato em todo o mundo. A mãe admite que ajudou a levar ao sucesso o grupo musical Destiny's Child, formado pelo trio de jovens cantoras adolescentes Beyoncé Knowles, Kelly Rowland e Michelle Williams.
É comovente quando leva o leitor às experiências que a tornaram bem-sucedida como empresária, estilista, colecionadora de arte e ativista. Com Beyoncé, fundou e foi presidenta da House of Deréon, uma marca de roupas cujo nome é uma homenagem à sua mãe. Depois, criou a linha Miss Tina, marca revolucionária ao incluir todos os tipos de corpos na indústria da moda
Em 2024, a empresária ajudou a criar a Cécred, a linha de produtos para cabelo de Beyoncé. Atualmente, administra a organização sem fins lucrativos voltada para as artes performáticas Waco Theater Center, o Centro para a Juventude Knowles-Rowland, em Houston, e os Anjos da Tina, um programa de mentoria para jovens em situação de risco social no sul de Los Angeles.
Tem tempo ainda para presidir o BeyGOOD, uma ONG dedicada a estabelecer a equidade econômica por meio de uma ampla gama de iniciativas. E dá atenção quando pode aos seis netos. Como ela disse, no lançamento do livro nos Estados Unidos: "Quando eu tive minha própria família, acreditava que minhas filhas precisavam saber de onde vinham para saber para onde estavam indo",
E, assim, o clã Knowles segue firme, amparado em matriarcas que se sucedem.