Ele queria retratar a dor do mundo em preto e branco. O sofrimento humano, a miséria, as guerras e, acima de tudo, a devastação ambiental. E Sebastião Salgado conseguiu. Para ele, a fotografia era seu idioma.
"É uma linguagem composta por todo o entorno para sua materialização. E, além disso, quando tiro uma foto, estou intervindo com toda a minha herança cultural, humana e relacional. É a minha vida, a minha personalidade, a minha maneira de ver o mundo, de me apresentar diante do que estou fotografando", escreveu o fotógrafo, em 19 de agosto de 2024.
"A fotografia se faz em uma fração de segundo, mas leva-se uma vida inteira para realizá-la", complementou ele no post no Instagram, em comemoração ao Dia Mundial da Fotografia.
Quando completou 80 anos, em 8 de fevereiro de 2024, Salgado disse ao jornal inglês The Guardian que já imaginava reduzir o ritmo, sem lançar novos projetos que demorassem longos períodos de execução. “Sei que não viverei muito mais. Já vi tanto e vi muitas coisas.”
O fotógrafo morreu na sexta-feira, 23 de maio, aos 81 anos, em Paris, seu refúgio durante a ditadura, que acabou virando sua casa. A causa não foi revelada, mas ele vivia com as sequelas da malária, contraída na década de 1990, quando passou um tempo na Indonésia.
Também sofreu por muito tempo com problemas na coluna, por causa do impacto causado pela explosão de uma mina terrestre, que atingiu seu carro, em 1974, durante a guerra que culminou na independência de Moçambique.
Ao longo da carreira de cinco décadas, sempre soube da importância de sua obra e viveu para desfrutar das homenagens. No ano passado, a Organização Mundial de Fotografia realizou uma exposição em Londres com o acervo de Salgado, que recebeu o prêmio de Contribuição Excepcional para a Fotografia, do Sony World Photography Awards 2024.
Seu acervo próprio contava com pelo menos 500 mil obras. Pela sua autoridade no tema ambiental, estava nos planos de Salgado participar da COP30, Cúpula do Clima da ONU que será realizada em Belém, em dezembro deste ano. Ele planejava apresentar uma exposição com 255 fotos enormes do projeto Amazônia (de 2021), que, ao lado do Gênesis (de 2013), está entre suas principais contribuições para a fotografia mundial.
Sua parceira de vida, Lélia Wanick Salgado, com que foi casado por 60 anos, sempre teve um papel central em sua jornada. Era ela que organizava suas exposições e cuidava da edição de seus livros, entre tantas outras atribuições fundamentais. “Não sei dizer onde eu termino e onde começa a Lélia. Ela é central na minha vida”, declarou na entrevista ao The Guardian.
Foi em Paris que Salgado despontou. Ele trabalhou para as principais agências da França, como Sygma, Gamma e Magnum, de onde saiu em 1994 para realizar seus próprios projetos.
Mas ele foi muito além do registro pelas lentes. Quis sair de espectador para realizador. Transformou uma terra arrasada, em Minas Gerais, em exemplo de preservação ambiental. Foi ao lado de Lélia que ele criou, em 1998, Instituto Terra, na antiga área que pertencia à sua família, em Aimorés, sua cidade natal.
A sede da ONG ocupa uma área de 2,5 mil hectares e é hoje uma Reserva Particular de Patrimônio Natural (RPPN). No espaço já foram plantadas mais de 3 milhões de árvores de 330 espécies. Transformar sua própria terra também não foi o suficiente. Salgado queria fazer mais pelo entorno, pelas famílias das cidades do Vale do Rio Doce que enfrentavam dificuldades de desenvolver ações de agricultura florestal, que fossem sustentáveis.
Sua enorme credibilidade global ajudou a instituição a angariar fundos para mudar essa realidade. A virada do Instituto ocorreu para valer em 2017, quando o cineasta Juliano Salgado, filho do casal que nasceu durante o exílio francês, assumiu o comando e conseguiu trazer financiadores internacionais.
Em 2023, a ONG conseguiu um aporte de € 13 milhões do banco de desenvolvimento alemão KfW para recuperar 4,2 mil nascentes e garantir renda para 2 mil famílias por meio da implementação de programas agroflorestais na região do Vale do Rio Doce.
O projeto mais recente do Instituto Terra está na captação de US$ 120 milhões, para garantir a revitalização de mais 1 mil nascentes. Além de mais aportes do KfW e da seguradora suíça Zurich, que já ajudou a adquirir uma área de 1,7 mil hectares para que o trabalho pudesse ser ampliado, a expectativa é pela entrada de novos financiadores estrangeiros e empresas brasileiras.
O instituto também vai utilizar parte dos recursos para formação ambiental dos moradores locais, em parceria com a Fundação Dom Cabral. A exemplo da obra de Sebastião Salgado da fotografia, o Instituto Terra também será representado no evento global no Pará.
A gestão do projeto não foi a única forma que Juliano enxergou para celebrar o legado do pai. A forma de Sebastião de enxergar o mundo pelo visor da câmera foi tão expressiva que acabou chegando ao tapete vermelho de Los Angeles.
Dirigido por Juliano, em parceria com o cineasta Wim Wender, o filme O Sal da Terra, sobre a trajetória do fotógrafo, com detalhes sobre seus primeiros trabalhos, em Serra Pelada, passando por registros na África e no Brasil, foi um dos indicados ao Oscar de melhor documentário de 2014.
Não levou o prêmio, mas foi uma grande oportunidade de mostrar a grandeza do trabalho de Sebastião Salgado.
Em entrevista ao NeoFeed em janeiro deste ano, Juliano se emocionou ao falar da importância dos pais para sua formação. E do quanto eles deram luz à temas importantes, antes de expressões como ESG se tornarem pautas globais. “Eles são inspiradores. Os dois sempre defenderam que natureza e humanidade precisam estar integradas”, contou o filho.
Em nota, o Instituto Terra homenageou seu criador: “Sebastião foi muito mais do que um dos maiores fotógrafos de nosso tempo. Ao lado de sua companheira de vida, semeou esperança onde havia devastação e fez florescer a ideia de que a restauração ambiental é também um gesto profundo de amor pela humanidade”.