Nos últimos anos, o Brasil deu passos importantes no combate à insegurança alimentar e nutricional. Em 2023, 14,7 milhões de pessoas deixaram de passar fome no país — queda de 85% em relação a 2022, conforme dados do último relatório da Organização das Nações Unidas (ONU). Mesmo assim, quase 22 milhões de mulheres, homens e crianças no país seguem sem ter o que comer ou com acesso restrito a alimentos saudáveis.
Há, portanto, um longo caminho a se percorrer rumo a um Brasil sem fome e bem alimentado. E esse problema é de todos nós — do governo, da iniciativa privada e da sociedade civil. Mas o que tange às grandes companhias, elas estão muito aquém de suas potencialidades. É o que revela o maior e mais minucioso estudo sobre as iniciativas empresariais em segurança alimentar, recém-concluído pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal (FJLES) .
Liderado pelo cientista político Pietro Carlos de Souza Rodrigues, PhD em relações internacionais e pesquisador principal do Laboratório de Filantropia, Políticas Públicas e Desenvolvimento da FJLES, o levantamento avaliou as ações das 150 principais empresas dos setores de agronegócio, comidas e bebidas e comércio varejista. Sessenta e cinco porcento - 98 empresas - se engajaram em ao menos uma ação para a promoção da segurança alimentar, entre 2020 e 2023.
No total, essas companhias financiaram ou apoiaram 681 iniciativas. A maioria foi de projetos de pequena escala, curta duração, objetivos específicos, sobretudo em situações emergenciais — quando o apelo publicitário é maior.
“Internamente, muitas vezes, as ações estão vinculadas às áreas de marketing, de mobilização da imagem das empresas” , diz Rodrigues, em conversa com o NeoFeed. “Não estão, por exemplo, relacionados a programas de responsabilidade social mais estruturados, com orçamento próprio. E isso acaba refletindo no tipo de iniciativa.”
Qualquer estratégia de combate à fome para promover uma mudança de fato estrutural tem de ser bem planejada e visar médio e longo prazo. Não é, entretanto, o que acontece.
Os programas mais bem organizados representaram apenas 17,33% das ações. Para se ter ideia, quase 15% de todas as iniciativas foram respostas à pandemia de covid-19 ou desastres naturais.
O papel principal no combate à fome e à desnutrição cabe ao Estado, mas as empresas podem atuar de forma complementar às políticas públicas. “Essa articulação, porém, não existe”, afirma Rodrigues.
A seguir, o NeoFeed analisa os pontos mais importantes do estudo da FJLES.
→ O alvo não é o público-alvo
Menos de um quinto das 681 iniciativas mapeadas focaram nos grupos mais suscetíveis à insegurança alimentar — pessoas em vulnerabilidade econômica ou populações historicamente marginalizadas, como mulheres, negros, indígenas, ribeirinhos e idosos.
Além disso, mais da metade das ações estavam concentradas no Sul e Sudeste, onde a maior parte das empresas estão sediadas. Ao excluir o Nordeste e Norte, os projetos deixaram de fora as regiões mais atingidas pela fome.
Dados do IBGE de 2024 indicam: 7,7% e 6,2% dos lares nordestinos e nortistas, respectivamente, vivem em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. No Centro-Oeste, são 3,6%; no Sudeste, 2,9% e no Sul, 2%.
→ As ações se concentram nos elos finais da cadeia produtiva
Entre 2020 e 2023, a filantropia empresarial se concentrou nas últimas etapas da cadeia produtiva. O elo "consumo" abrangeu 53,3% das iniciativas, com destaque para a doação de alimentos. Em seguida, vêm as ações de “produção”, como a criação de hortas comunitárias.
“Mas a fome é mais do que isso”, avalia Rodrigues. “A fome é um problema estrutural… estamos falando de capacitação, de acesso a crédito e às tecnologias agrárias, de fortalecimento da agricultura familiar.”
Ações nos elos de processamento, armazenamento, varejo/atacado e logística representam apenas 6%. A atuação nesses estágios é fundamental para o sucesso do combate à insegurança alimentar e nutricional pois concentram grande parte do desperdício de alimentos.
A integração de toda a cadeia alimentar nos programas é imprescindível para garantir o acesso contínuo, qualificado e sustentável à comida.
→ O apoio às ONGs é pontual — de preferência quando todo mundo pode ver
Uma empresa pode atuar no combate à insegurança alimentar diretamente ou por meio do apoio a ONGs — seja pela distribuição direta de alimentos até a capacitação de agricultores. “No entanto, nessas parcerias, frequentemente há limitações no financiamento de outras necessidades das organizações executoras, como a manutenção de seus espaços ou a contratação e capacitação de equipes”, avaliam os pesquisadores da FJLES, no relatório da pesquisa.
Menos de 4% das companhias investem no fortalecimento das ONGs. Fácil entender o porquê: apesar de mais duradouro e importantíssimo, manter uma organização da sociedade civil funcionando é um tipo de investimento menos atrativo do ponto de vista da visibilidade, argumentam os especialistas.
E, quando esse apoio existe, tende a ser direcionado para entidades grandes e reconhecidas nacionalmente. Ao não incluir as pequenas em seus planos de investimento, a filantropia corporativa deixa de fora ONGs com muita capilaridade.
→ Falta transparência às empresas
O estudo da FJLES revela ainda a pouca transparência das companhias. “Conseguir os dados para esse trabalho foi um trabalho hercúleo”, define Rodrigues.
Os relatórios de atividades não são regulares e carecem de dados básicos, como a natureza das ações, os atores envolvidos, os públicos-alvo, os orçamentos e as parcerias firmadas.
A falta de informações completas, claras e auditáveis não só favorece a prática do social washing como representa um entrave ao avanço dos esforços pela garantia da segurança alimentar e nutricional no Brasil.