O anúncio da assinatura de um memorando entre governo brasileiro e a China Railway Economic and Planning Research Institute – braço da China State Railway Group, maior empresa ferroviária pública do mundo –, agendado para esta segunda, 7 de julho, em Brasília, chamou a atenção por citar como objetivo a realização de pesquisa e planejamento sobre um “sistema de transporte integrado no Brasil”.
Desde que as primeiras negociações de uma parceria entre os dois países ganharam força, em abril, com a vinda de uma comissão chinesa para analisar algumas obras ferroviárias, a percepção entre especialistas do setor é que o objetivo do governo brasileiro era obter apoio técnico e financeiro dos chineses para viabilizar a rota bioceânica – um corredor logístico de 4.400 km que começa no porto de Ilhéus, no Atlântico, e vai até o porto de Chancay, no Pacífico.
A possível obra, criticada por especialistas pelo alto custo, na verdade é apenas uma das possibilidades que podem surgir dessa parceria.
Em entrevista ao NeoFeed, o secretário nacional de Transporte Ferroviário, Leonardo Ribeiro, principal gestor da área no Ministério dos Transportes, disse que a parceria tem planos ainda mais ousados.
“Eles querem avaliar toda a logística de cargas do País para saber qual a melhor alternativa para escoar as exportações brasileiras para a China”, diz Ribeiro. “Querem estudar todas as alternativas, inclusive a possibilidade de um sistema integrado multimodal, envolvendo ferrovia, rodovia e hidrovia.”
Ribeiro explicou que a parceria prevê confidencialidade dos dados compartilhados e será fundamental para o Brasil em dois aspectos. Por um lado, ajudará a pasta a criar um banco de informações sobre o sistema brasileiro de transporte de cargas essencial na elaboração de um planejamento estratégico ferroviário.
Por outro, vai facilitar a entrada de empresas chinesas nas concessões ferroviárias: “Todas essas informações – análise de demanda, de traçado, etc – vão fornecer subsídios para permitir que os chineses entrem em futuras concessões de ferrovias, eles precisam dessas informações, como precisaram quando entraram nas concessões de energia.”
Leia a seguir outros trechos da entrevista, na qual Ribeiro revela detalhes do Plano Nacional de Ferrovias e a estratégia da pasta para atrair o setor privado para os leilões ferroviários:

O anúncio do memorando prevê a realização de pesquisa e planejamento sobre um sistema de transporte integrado no Brasil. Há outros projetos que o governo pretende incluir nessa parceria com os chineses, além dos estudos sobre a rota bioceânica?
Essa parceria sela um acordo histórico com o instituto de pesquisa ferroviária da China Railway, que conta com engenheiros e técnicos especializados. Como esse acordo prevê uma governança de confidencialidade de dados, vamos fazer em conjunto uma ampla pesquisa sobre o sistema brasileiro de transporte de cargas focado em ferrovias, além do corredor bioceânico. Todas essas informações – análise de demanda, de traçado, etc – vão fornecer subsídios para permitir que os chineses entrem em futuras concessões de ferrovias, como entraram nas concessões de energia.
Que tipo de estudos estão previstos neste acordo?
Principalmente na área multimodal. Eles querem estudar não só o corredor bioceânico, mas como estamos escoando as cargas de ferrovias, rodovias, hidrovias e portos, a partir de Lucas do Rio Verde (MT). Querem analisar todas as rotas – subindo para o Arco Norte, em direção a Ilhéus (BA), para Santos e para Chancay. Ou seja, querem fazer um estudo integrado, pois eles estão interessados em saber da viabilidade de usar o Arco Norte; analisar o trecho de expansão da Ferrovia Norte-Sul; e o corredor FICO-FIOL, fazendo transporte do centro do País até o Atlântico. Esse corredor FICO-FIOL é o principal corredor estratégico, pois corta o País de norte a sul e de leste a oeste, e tem muitos trechos concluídos.
Os chineses já visitaram as obras da FICO e FIOL em abril quando trouxeram uma delegação. Qual a avaliação deles?
Eles ficaram impressionados com a engenharia empregada nas obras. Esse corredor pode viabilizar a carga para o porto de Chancay, levando em consideração, inclusive, um sistema integrado multimodal, sem ser apenas por ferrovia. Ou seja, pode fazer transporte de carga ferroviária até Lucas do Rio Verde e completar por rodovia ou construir uma ferrovia seguindo o traçado das BRs até Chancay. Eles querem estudar todas as possibilidades.
“Os chineses querem estudar todas as alternativas de rotas para Chancay, por ferrovia e rodovia”
A eventual construção da rota bioceânica recebeu muitas críticas de parte dos especialistas. Queria que o senhor alinhasse argumentos a favor desse projeto.
Estamos selando uma parceira com os maiores especialistas em ferrovias do mundo. A china tem a indústria ferroviária mais avançada do planeta. Estamos trazendo os melhores para pensar como destravar os gargalos da infraestrutura no Brasil. Sabemos que ferrovia transporta de forma mais eficiente, mas demanda mais custos para construção. Por isso os chineses querem avaliar a distância de transporte da carga do centro do País para os portos do Atlântico – Arco Norte, Ilhéus e Santos. A distância do Mato Grosso para o Atlântico é mais curta do que para Chancay. Mas a distância marítima de Chancay para a China é menor do que de Santos a Xangai. Isso é que precisa ser avaliado. Além dessa conta, precisamos estudar o traçado e o investimento necessário para implantar uma ferrovia, num contexto de recursos escassos.
É isso que os chineses querem estudar?
Sim, não é apenas o corredor bioceânico, mas outras saídas. Esse estudo não só vai permitir que os chineses entrem no setor de transporte com informações e segurança jurídica, como estabelecer o custo-benefício para transportar carga até Chancay.
Há críticas ao risco de a rota bioceânica levar à perda de autonomia estratégica logística do Brasil para a China. Como o senhor vê essa questão?
Há muito desconhecimento nesse quesito. O governo tem vários instrumentos para fazer política externa, tarifária e de proteção. Por exemplo, temos a Camex, que é a Câmara de Comércio Exterior, e instituições à disposição do MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) que podem reduzir esse risco. Precisamos pensar de uma forma transversal. Do ponto de vista da logística do transporte, precisamos de investimento privado, de parceiros e de projetos viáveis. O meu papel aqui é fazer parcerias para atrair investidores, com estratégia de financiamento. Ou seja, é uma discussão que não é só do Ministério de Transportes, envolve visão de Estado e de governo. Fizemos apenas três leilões nos últimos 30 anos, e um deles deu errado.
Qual leilão, o da FIOL?
Isso, a FIOL 1 foi concedida em 2021 e deu errado em quatro anos. Não teve um banco de projetos, funding, planejamento, não teve nada. Tenho até um lema: a pressa é inimiga da concessão. O setor ferroviário exige muitos recursos. A estratégia de fazer obra pública para depois conceder, até funciona. Mas obras no setor ferroviário demoram muitos anos, e a eficiência da obra pública é menor em comparação com o setor privado.
Como reverter esse gargalo?
Estamos criando uma estratégia baseada no aporte de viabilidade: em vez do governo, o privado é quem faz, vai lá e constrói - e o governo concede recursos. Está funcionando na Ásia, em especial na Índia e Indonésia. Eles fazem o chamado viability gap funding (VGF). Quando você constrói uma ferrovia, não tem infraestrutura pronta. Esse tempo de construção acaba comprometendo a viabilidade do projeto do ponto de vista econômico-financeiro. Assim, o governo vai aportar recursos e o privado entra. O interessante é que esse aporte tem de ser na medida do necessário porque os recursos são finitos. Ou seja, precisa aportar da forma mais eficiente possível.
“Estamos criando uma estratégia na qual o governo aporta os recursos e o setor privado faz a obra ferroviária”
O setor privado tem demonstrado interesse?
Sim, para fundos de investimento, por exemplo, é uma boa alternativa. Porque o fundo pode participar do projeto, com funding, aproveitando essa parceria público-privada, e depois que ficar pronto pode passar para um grupo logístico. Com isso, consegue valorizar e tem um ganho.
Essa parceria com os chineses pode impulsionar o Plano Nacional de Ferrovias?
O plano já está em execução. Basicamente, é um corredor Norte-Sul e Leste-Oeste, separando o País em quatro eixos. Para cada empreendimento, estamos buscando soluções.
Qual a estratégia para viabilizar o Plano Nacional de Ferrovias?
Criamos um tripé. Assim como o governo FHC criou um tripe macroeconômico – câmbio flutuante, responsabilidade fiscal e meta de inflação -, pensamos num tripé para levantar recursos para desenvolver o setor ferroviário. Estamos criando uma estratégia de funding, pois só aportes do governo não resolvem. Criamos um banco de projetos, essencial para fazer estudos que vão indicar a engenharia e o aporte necessários para tomar decisões. Para completar esse tripé, temos um portfólio normativo, que vai tornar os projetos mais viáveis.
Do que consiste esse portfólio normativo?
O objetivo é induzir a utilização do real estate para reduzir a necessidade de aporte, usando os ativos da faixa de domínio e as receitas alternativas com o setor imobiliário, para trazer recursos para dentro dos projetos ferroviários. Vamos anunciar também uma nova política para material rodante. Até agora, locomotiva e vagão são considerados bens reversíveis. Por que o governo quer receber daqui a 30 anos uma sucata? Por que isso não fica com o privado? A ideia é induzir o operador a não comprar, mas alugar. O tripé, portanto, prevê estratégia de funding, banco de projetos e política pública para tornar esses projetos mais atrativos.