Victor Colella está sentado diante do juiz. Ele fora multado por excesso de velocidade em uma área escolar. “Eu não dirijo tão rápido... Eu tenho 96 anos e dirijo devagar. Só dirijo quando preciso. Eu estava levando meu filho para fazer exames de sangue”, conta.

Aos 63 anos, o filho do aposentado tem câncer. O magistrado se compadece da dedicação paterna. “Você é um bom homem”, elogia. E brinca dizendo que, a partir daquele momento, ele próprio se sentiria pressionado para, em seus 90 anos, também dirigir para os filhos. Todos riem.

O humor, a empatia e a compaixão dispensados ao nonagenário eram a marca registrada de Frank Caprio. Ao longo de quase 40 anos, à frente do Tribunal Municipal de Providence, no estado americano de Rhode Island, ele foi o "juiz mais gentil do mundo". E, como tal, viralizou nas redes sociais — Colella é seu caso mais ruidoso, ultrapassando 200 milhões de views.

Ao morrer na quarta-feira, 20 de agosto, aos 88 anos, vítima de um câncer de pâncreas, Caprio deixa a certeza de que a Justiça nem sempre deve ser exercida a ferro e fogo. Que nos tribunais há espaço para o olhar da clemência e a escuta da compreensão.

Graças à internet, ele conquistou fãs ao redor do mundo. Localizado em Federal Hill, bairro modesto da comunidade ítalo-americana, o tribunal até virou ponto turístico para gente vinda de toda parte. Em 2022, o magistrado foi surpreendido pela visita da catarinense Dayse Fedrigo.

De passagem por Providence, ela fez questão de levar um presente para o juiz: uma camiseta pintada por ela com a imagem do magistrado (e suas meias coloridas) observando o skyline de Balneário Camboriú, cidade natal da moça.

"Os Estados Unidos são muito diferentes do Brasil. Quando temos de pagar multas e impostos, não temos a chance de explicar. Somos apenas cobrados. O senhor é misericordioso", diz a jovem. Ao que o magistrado responde: "Nós não estamos aqui para punir as pessoas. Nós estamos aqui para fazer justiça (...) Tudo que eu faço é tratar as pessoas com dignidade".

Somados o YouTube e o TikTok, o vídeo do encontro soma cerca de 80 milhões de visualizações.

A admiração por Caprio se deve em grande parte ao fato de ele se contrapor à imagem tradicional dos "homens de toga", sempre muito rígidos, inflexíveis e austeros. "A Justiça deveria ser para todos, mas não é", afirma ele, em um vídeo. “Quase 90% dos americanos de baixa renda são forçados a enfrentar sozinhos questões civis como assistência médica, despejos injustos, benefícios a veteranos e, sim, até mesmo infrações de trânsito.”

Quanto mais se afastava do estereótipo, mais Caprio se tornava conhecido. Tanto que, em 2000, ganhou um programa de televisão — Caught in Providence, exibido inicialmente apenas em Rhode Island.

Em 2018, o reality show com julgamentos por descumprimento das normas de trânsito, questões de moradia e pequenos delitos passou a ser transmitido por 200 emissoras para todos os Estados Unidos. Dali, o altruísmo do juiz alcançou escala planetária.

Os clipes do Caught in Providence somam quase um bilhão de views no YouTube — e fotos e frases de Caprio passaram, inclusive, a decorar camisetas, bonés, garrafinhas de água e até papel de presente, vendidos em seu site.

O menino Caleb, a mãe em luto e a mulher azarada

Fazem muito sucesso os episódios nos quais Caprio “convoca” as crianças para julgar os pais. O menino Caleb, de cinco anos, por exemplo, é quem encerra o caso da mãe, Stephanie.

Grávida da menina Amélia, ela fora multada por estacionar em lugar proibido. “Vamos dar um presente adiantado a ela pela chegada da sua irmã?”, pergunta o juiz. Ele então ensina o garotinho a bater o martelo e dizer: “Caso arquivado”.

Algumas histórias são trágicas como a da mulher com US$ 400 acumulados em multas. Ela explica estar em um momento dificílimo: o luto pelo filho assassinado.

“Não creio que alguém na vida devesse passar por isso”, diz Caprio. Ao que ela responde, chorando: “É a pior sensação do mundo. Sinto-me tão vazia e perdida”. O juiz então a isenta do pagamento. Número de visualizações no Facebook: 170 milhões, com comentários em nove idiomas.

Os vídeos com as crianças estão entre os mais assistidos, como o do garoto Caleb, de 5 anos (Foto: caughtinprovidence.com)

No Instagram, o juiz contou que o caso mais lembrado pelas pessoas era o de Victor Colella, o pai de 96 anos multado ao levar o filho de 63 doente ao médico. Os dois ficaram amigos até a morte do aposentado em 2024 aos 101 anos (Foto: Instagram @therealfrankcaprio)

Em 2022, de passagem por Providence, Day Fedrigo fez questão de entregar uma camiseta de presente para Caprio (Foto: Instagram @daysefedrigo)

Caprio tornou público seu tratamento contra o câncer de pâncreas,. Frequentemente ele ia às redes sociais pedir que orassem por ele e para agradecer o carinho dos fãs (Foto: Instagram @therealfrankcaprio)

Antonio, pai de Caprio, acompanhou o primeiro caso do filho como juiz e o repreendeu por ter sido "duro" com uma mãe de quatro filhos que passava por dificuldades financeiras (Foto: Instagram @therealfrankcaprio)

O sucesso juiz era tanto que artigos com suas imagens e frases mais são vendidos em seu site (Foto: frankcaprio.com)

Caprio lançou o livro "Compassion in Court" ("Compaixão na Corte") no início do ano (Foto: frankcaprio.com)

Nem sempre Caprio dispensava os réus de suas obrigações para com a Justiça. Senhora de meia-idade, Maria Lemore se apresenta. Imigrante de origem latina, ela é acusada por excesso de velocidade. A mulher tenta explicar que havia aproveitado a hora do almoço no trabalho para cumprir um compromisso do outro lado da cidade.

“Então a senhora estava com pressa”, provoca o juiz, rindo. Não resta mais nada a Maria senão concordar. “A senhora deve pedir mais tempo de almoço para seu chefe ou comer menos”, mais risos — inclusive os dela. A senhora então começa... nos últimos dois anos, vencera um câncer, sobrevivera à explosão de uma panela em seu rosto e, mais recentemente, quebrara o tornozelo: “Sou muito azarada”.

Sério, Caprio mostra como ela agora está "bem, forte e vibrante" e ratifica a multa de US$ 50. Nem assim ele ou a "condenada" perdem o bom humor.

Aliás, algumas das pessoas julgadas pelo "juiz mais gentil do mundo" acabavam se tornando próximas. Aconteceu com Victor Colella. Desde o encontro no tribunal, Caprio visitava frequentemente o aposentado.

Colella lhe preparou sua famosa torta de maçã, eles se encontravam para comer pizza e assistiram juntos ao Emmy de 2024, para o qual Caprio fora indicado na categoria de melhor apresentador diurno.  Em outubro do mesmo ano, o juiz foi às redes sociais lamentar a morte do amigo aos 101 anos.

"Estou fazendo o que meu pai me ensinou"

Na nota de falecimento do juiz, sua mulher Joyce, os cinco filhos, sete netos e dois bisnetos escrevem: “Amado por sua compaixão, humildade e crença inabalável na bondade das pessoas, o juiz Caprio tocou a vida de milhões por meio de seu trabalho no tribunal e além (...) Seu calor humano, humor e gentileza deixaram uma marca indelével em todos que o conheceram."

Todas essas qualidades estão espalhadas em milhares de cenas pela internet. Um caso tocante é o de Rosanne. Quando ela se coloca diante de Caprio, o juiz solta: “Eu já te vi antes”. A mulher assente com a cabeça. Vinte anos atrás, ela morava na rua e era dependente química. Os dois se encontraram em um centro de apoio à população sem-teto.

Vendo a inquietação da moça, o juiz a puxou de canto: “Você não parece ser uma mulher estúpida. Não importa o que você faça na vida, goste ou não do seu trabalho, faça o melhor que você puder. Certifique-se de dar 110% de si". Desde então, o conselho de Caprio sempre acompanhou Rosanne.

Quanto às duas multas por dirigir acima da velocidade, o magistrado faz um desconto e ainda paga a dívida de US$ 70 — o dinheiro vem do fundo de doações para custear as despesas judiciais dos mais pobres.

"Acho que devo levar em consideração se alguém está doente, se a mãe dele morreu e se tem filhos passando fome", costumava dizer Caprio. "Eu não uso um distintivo por baixo da toga, mas, sim, um coração.”

Ele, no entanto, nem sempre foi tão compassivo. Em entrevista a uma rede de televisão, ele lembra seu primeiro dia como juiz.

Seu pai, Antonio, imigrante italiano, leiteiro, fez questão de estar presente no tribunal. Em um dos casos, o jovem magistrado foi duro (como o seria qualquer juiz) com uma mulher que não havia pago suas multas.

Quando terminou a audiência, veio a repreensão paterna: "Frank, ela tinha quatro filhos… Só porque você tem autoridade não significa que você tenha de exercê-la de forma ruim”.

Antonio nunca deixara uma família que estivesse passando por dificuldades ficar sem leite por falta de dinheiro.

"Em última análise, estou apenas fazendo o que meu pai me ensinou a fazer. Estou apenas seguindo o conselho dele”, lembra Caprio, em entrevista à CBS. "E isso repercutiu no mundo."

Agora, é atender ao pedido de David, filho do juiz, feito no vídeo de agradecimento pelo carinho dos fãs: "Em memória dele, por favor, espalhem um pouco de gentileza. Eu sei que ele adoraria isso. Pai, eu te amo. Descanse em paz".