Um dos projetos mais emblemáticos da infraestrutura nacional, a Ferrogrão é, ao mesmo tempo, um dos mais controversos. Idealizada em 2012, dentro do Programa de Investimentos em Logística (PIL), a ferrovia nasceu de um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para criar um corredor ferroviário paralelo à BR-163, ligando Lucas do Rio Verde (MT) a Miritituba (PA). O objetivo sempre foi claro: reduzir custos de transporte, aumentar a eficiência do escoamento de grãos e consolidar o Arco Norte como alternativa estratégica aos portos do Sudeste.
Entre 2014 e 2019, a iniciativa avançou com a elaboração de sucessivas versões do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA). Nesse período, o projeto incorporou ajustes no traçado, análises socioambientais preliminares e oitivas públicas em cidades como Cuiabá, Belém e Novo Progresso. Essas etapas mostraram a complexidade de conciliar interesses logísticos, ambientais e sociais em uma obra de mais de mil quilômetros de extensão.
O processo, no entanto, sofreu um revés em 2021, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o avanço da ferrovia ao julgar a ADI 6553, que questionava a lei que permitiu a adaptação dos limites do Parque Nacional do Jamanxim. A decisão paralisou os trâmites e reforçou a percepção de que o projeto só poderia prosperar com maior robustez jurídica, ambiental e técnica.
A retomada ocorreu em 2023, quando o novo governo solicitou ao STF a atualização dos estudos e um conjunto de audiências públicas. O ministro relator liminarmente autorizou a continuidade dos estudos, mas vetou o início das obras sem aval judicial.
A partir daí, o governo federal, através do Ministério dos Transportes e da Infra S.A., solicitou a atualização ampla do EVTEA (Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental), incluindo análises de impacto cumulativo, avaliação de custo-benefício segundo critérios do Ministério da Fazenda e alinhamento às metas do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia - PPCDAm. Organizações como a Rede Xingu+ e o Instituto Socioambiental (ISA) participaram ativamente das discussões.
O resultado foi a quinta versão do estudo, concluída em agosto de 2024. Os números são expressivos: capacidade de até 70 milhões de toneladas por ano, redução de 20% no frete médio do Mato Grosso, emissões evitadas de 3,4 milhões de toneladas de CO₂ equivalentes e R$ 800 milhões reservados para medidas socioambientais. Além disso, o Valor Social Presente Líquido foi calculado em mais de R$ 60 bilhões, reforçando o impacto econômico positivo da ferrovia.
Mas se do ponto de vista técnico e ambiental o projeto amadureceu, o desafio agora é financeiro e de modelo de negócio. Estima-se que a execução da Ferrogrão leve cerca de oito anos, o que exigirá o maior volume anual de capital já demandado por um projeto de infraestrutura de transportes no Brasil. Como a modelagem prevê a ausência de aportes diretos de recursos públicos, caberá à iniciativa privada captar e sustentar investimentos bilionários em ritmo acelerado.
A execução da Ferrogrão deve levar oito anos, o que exigirá o maior volume anual de capital já demandado por um projeto de infraestrutura de transporte no Brasil
Nesse contexto, o papel do agronegócio será decisivo: grandes traders de grãos e cooperativas do setor precisarão assumir compromissos de longo prazo, estabelecendo contratos de garantia de carga mínima ou mesmo contratos de take-or-pay, em que o embarcador se compromete a pagar, mesmo que não envie a carga prevista. É aqui que a cooperação econômica entre diferentes atores precisa se apresentar, pois nenhum dos atores envolvidos neste projeto pode melhorar seu resultado sozinho, assim como propõe o Equilíbrio de Nash.
Esses instrumentos são fundamentais para dar previsibilidade de receita à concessão, reduzir riscos para os financiadores e atrair o interesse de bancos e fundos de investimento. Sem essa “âncora” do agronegócio ou das trades que comercializam as commodities agrícolas, dificilmente a ferrovia se tornará financeiramente viável. Essa foi a percepção após um longo processo de market sounding ao longo de 2025, junto a operadores e ao mercado financeiro, tanto nacional quanto internacional.
Atualmente, o projeto está em análise pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e deve seguir para apreciação do Tribunal de Contas da União em 2025. A previsão é que o edital de concessão seja publicado em 2026.
Ao contrário do que críticos vêm ventilando, o atual governo não parou um só dia de trabalhar na viabilização deste projeto, que foi entregue pelo governo passado com dados absolutamente desatualizados, sem qualquer discussão com o BNDES ou com o mercado financeiro a respeito da melhor estratégia de financiamento e alavancagem financeira, com um traçado que não observava limitações das regras de licenciamento, sem qualquer tipo de mecanismo de compensação de seus impactos, sem ter ouvido as comunidades originárias e as entidades de controle e proteção ambiental.
Muito se avançou nos últimos dois anos e nove meses. Se concretizada, a Ferrogrão será mais que uma solução logística: será um símbolo de como a infraestrutura brasileira pode evoluir a partir de negociações complexas, envolvendo governo, empresas, órgãos de controle, sociedade civil e comunidades locais.
É um projeto que representa um teste de maturidade para o país: mais do que transportar grãos, ele carrega a responsabilidade de provar que desenvolvimento econômico e sustentabilidade podem caminhar juntos.
*George Santoro é secretário-executivo do Ministério dos Transportes