Antes da eleição de Donald Trump, em novembro de 2016, o documentarista Anthony Baxter tentou mostrar como o então candidato à presidência dos EUA teria deixado uma viúva escocesa de 92 anos sem água.
“You’ve Been Trumped Too” deveria ter sido lançado em outubro daquele ano, denunciando a dura realidade de Molly Forbes. A idosa alegava que o seu abastecimento de água tinha sido cortado após trabalhadores de Trump construírem o seu luxuoso campo de golfe na costa de Aberdeenshire, na Escócia, em 2012.
A situação já se arrastava por quatro anos. Mas ameaças de ação judicial por parte da Trump International Golf Links da Escócia, que pertence à Organização Trump, impediram que o filme chegasse às telas como previsto.
A estreia mundial ocorreu finalmente na última terça, 17 de agosto, trazendo a saga diária de Molly, que dependia da água trazida em baldes ou em garrafas pela família para matar a sede, cozinhar, usar o banheiro ou regar seus tomates plantados em vasos.
Disponível em plataformas de VoD (video on demand), “You’ve Been Trumped Too” é uma das novas atrações do GooglePlay no Brasil. O documentário entrelaça o drama de Molly com momentos da campanha presidencial de Trump e também do encontro de Baxter com o magnata, em 2013, em Nova York.
Há ainda imagens da prisão de Baxter, a pedido da Trump International Golf Links, quando ele buscava explicações para o corte de água na casa de Molly, conforme o diretor conta ao NeoFeed na entrevista a seguir.
Por que a estreia mundial do documentário atrasou tanto?
Assim que terminamos “You’ve Been Trumped Too”, em 2016, queríamos muito que o filme fosse visto, sobretudo nos EUA. Equipes jurídicas já tinham nos assessorado para que o documentário pudesse ser distribuído nos dois lados do Atlântico. Mas a Trump International ameaçou entrar com ação contra qualquer pessoa que repetisse as alegações feitas no filme. Mais especificamente as de Molly Forbes. Com isso, o distribuidor desistiu de lançar o título, como era previsto, e quis que retirássemos o nome e o logotipo da empresa da produção.
Dá para entender que o filme poderia prejudicar a campanha presidencial de Trump – daí a organização ter tentado impedir o seu lançamento. Mas por que o título não foi lançado depois da eleição?
Porque levamos quatro anos para garantir a cobertura legal e o seguro necessário. Com as ameaças, as cotações de seguro para que o filme fosse lançado subiram tão assustadoramente que levariam nossa empresa à falência. Só quatro anos depois é que também conseguimos finalmente encontrar um distribuidor, a Journeyman Pictures, que topou levar o filme ao público, apesar das ameaças da Trump International.
Como isso aconteceu? A organização ameaçou processar quem distribuísse e quem exibisse a produção?
Vários jornais publicaram artigos contando o que o filme abordava (antes mesmo de o documentário ficar pronto). Mas as matérias desapareceram após o intimidante release de imprensa divulgado pela Trump International. (Segundo o comunicado de 27 de outubro de 2016, as alegações de Molly Forbes eram “ofensivas, difamatórias e categoricamente falsas” e a organização entraria com “ações legais contra aqueles que as propagassem”.) Essa ameaça foi suficiente para minar o lançamento do filme.
“Donald Trump me avisou previamente, pelo Twitter, que posso esperar ser processado. Trump tem mesmo o hábito de ameaçar com ações legais”
Você também foi ameaçado?
Donald Trump me avisou previamente, pelo Twitter, que posso esperar ser processado. Trump tem mesmo o hábito de ameaçar com ações legais. Ele fez isso recentemente com a sua sobrinha, Mary Trump, por causa da publicação de suas memórias reveladoras. O mesmo aconteceu com o ex-conselheiro de segurança nacional John Bolton (que escreveu um livro relatando os bastidores de Washington). De certa forma, essa é a característica clássica de quem faz “bullying”, algo que os moradores que foram contra o seu campo de golfe de luxo sofreram por mais de uma década.
Por que você foi preso enquanto rodava o documentário? De que foi acusado?
Fui acusado de violar a paz, o que é um crime na Escócia, simplesmente por conduzir uma entrevista na propriedade de um morador, com o seu total consentimento. (O entrevistado é um funcionário da Trump International que não é identificado no filme e apenas diz não saber quando a água da casa de Molly seria restaurada). Na época, o Sindicato Nacional de Jornalistas da Grã-Bretanha disse se tratar de um “exemplo flagrante de interferência policial destinada a impedir jornalistas de boa-fé de fazerem seu trabalho”. Posteriormente, a polícia (que havia sido chamada pela organização, ao tomar conhecimento da entrevista) emitiu um pedido de desculpas.
Houve alguma reação da Trump International Golf Links mais recentemente, em função da estreia do filme?
Esta pergunta deve ser destinada a eles. (O NeoFeed contatou a organização na Escócia por e-mail, mas não teve resposta.)
Por que o conteúdo do documentário não foi atualizado? (Molly, hoje com 96 anos, foi transferida para uma casa de repouso.)
O filme é exatamente aquele que foi concluído em 2016. E, como disse um crítico de cinema na semana passada, “parece mais relevante do que nunca”.
O que espera atingir com o documentário?
É importante que as vozes dos residentes em Aberdeenshire, na Escócia, sejam ouvidas. Por mais de uma década, eles lutaram contra o poder e o dinheiro de Trump para defender o meio ambiente, mas aquela região de natureza selvagem foi destruída para sempre com o campo de golfe. Em muitos aspectos, o episódio ocorrido na Escócia é um microcosmo do que foi desencadeado no mundo todo desde que Trump se tornou o presidente dos EUA. O governo escocês foi seduzido pelas promessas de Trump, como a de criação de 6.000 empregos, mas a realidade mostrou se tratar de poucos empregos mal remunerados. A própria Molly diz no filme: “Trump é uma criança que nunca cresceu”.
Quando conheceu Trump, qual foi a sua impressão?
Ele foi muito simpático ao entrar na sala da Trump Tower, em março de 2013. Mas a atmosfera mudou rapidamente, assim que passei a fazer perguntas sobre o que estava acontecendo com os moradores de Aberdeenshire e principalmente com Molly Forbes, que sempre foi contrária ao empreendimento dele na região. Molly e o filho Michael se recusaram a vender a sua propriedade a Trump. Daí ele descrever no filme a fazenda de Molly como “uma favela” e o filho dela como um “um porco”. A perseguição que Molly sofreu foi ainda mais ultrajante por Trump ter admitido para mim e para a câmera que ela o fazia recordar da própria mãe (Mary Anne Trump, também escocesa, que morreu em 2000.)
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