Citada na música “Tombstone Blues”, de Bob Bylan, Ma Rainey (1886-1939) é considerada a “mãe do blues”. Ainda que seu nome não costume aparecer ao lado dos de Muddy Waters e Robert Johnson, como as figuras mais influentes do blues, Ma esteve entre os primeiros profissionais afro-americanos que gravaram o gênero musical nos anos 20.
A cinebiografia “A Voz Suprema do Blues”, uma das atrações deste mês no catálogo da Netflix, busca justamente dar a Ma o crédito que ela merece. Sua voz expressava toda a opressão que sofria por ser negra, além de evocar suas desilusões amorosas, outros dramas pessoais ou mesmo a sua vida de excessos, marcada por bebedeiras.
Ma ainda ficou conhecida por nunca se desculpar por quem era. Com personalidade forte, ela não escondia ser bissexual. Ao contrário: suas letras e suas apresentações deixavam isso bem claro. Com comportamento feminista, ela sempre desafiava os costumes da época, o que dava ainda mais profundidade ao blues que cantava.
“Ainda hoje, vemos a mulher se desculpar por qualquer coisinha. Até mesmo quando a casa está bagunçada”, disse a atriz Viola Davis, muito elogiada pela performance como Ma. Consagrada com canções como “Moonshine Blues” (1923) e “Ma Rainey’s Black Bottom” (1927), a artista é vista aqui com toda a sua genialidade, assim como os seus defeitos.
“Temos o direito de representar as mulheres mais bagunçadas também, o que não diminui o nosso valor. Só nos deixa mais humanas”, afirmou Viola, de sua casa em Los Angeles, em evento online que teve cobertura do NeoFeed.
O intenso desempenho deixa a atriz com chances de ser lembrada nas indicações ao próximo Oscar, já que a pandemia forçou a Academia de Hollywood a mudar as suas regras. Os filmes lançados apenas digitalmente em 2020 também serão elegíveis ao prêmio que será entregue no ano que vem.
Viola traduz na sua interpretação toda a força e a energia de Ma, uma líder nata que tinha uma banda própria e não se curvava diante de produtores brancos, acostumados a explorar os artistas negros.
Adaptada da peça “Ma Rainey’s Black Bottom”, de August Wilson, a cinebiografia dirigida por George C. Wolfe resgata a Chicago dos anos 20. Toda a ação gira em torno de um estúdio onde os músicos da banda de Ma a esperam para a gravação de um novo álbum.
Enquanto a artista (por sinal, bem atrasada) não chega, crescem a tensão e o embate de egos no local. As discussões acabam sempre trazendo à superfície os problemas daquela realidade social, com foco nas questões raciais e nos traumas causados pelo preconceito.
O jovem trompetista Levee parece não suportar os mais veteranos do grupo, criando confusão por qualquer coisa – como alguém ter pisado no seu pé. Quem interpreta o músico é o ator Chadwick Boseman, que morreu em agosto deste ano, vítima de câncer. Seu desempenho visceral, carregado de raiva, também impressiona, o que faz seu nome figurar entre os atores cotados para uma indicação (póstuma) ao Oscar.
Quando Ma finalmente aparece no estúdio, acompanhada de sua jovem namorada, ela quer fazer tudo do seu jeito. A artista já era famosa na época, o que a deixava um tanto temperamental – como ela demonstra na insistência para que seu sobrinho gago faça a introdução de sua música, mesmo que ele atrase ainda mais a gravação.
Nascida como Gertrude Pridgett, em Columbus, no Estado da Georgia, Ma começou a se apresentar ainda na adolescência. Ao se casar com o dançarino e comediante Will “Pa” Rainey, que se tornou o seu empresário, ela passou a excursionar com a trupe de entretenimento Rabbit Foot Minstrels, pelo sul dos EUA.
Foi nesse período que ela começou a incorporar o blues em shows de vaudeville (ou teatro de variedades), algo até então impensável. Graças ao estilo de cabaré, que era bastante apreciado pela plateia branca, Ma ajudou a difundir o blues, gênero nascido com os negros no sul dos EUA. Apesar da segregação racial, ela conseguia cantar para o público negro e branco ao mesmo tempo.
O pé no vaudeville explica o visual exuberante da cantora, caracterizado por maquiagem pesada, peruca, dentes de ouro e joias chamativas. No palco de seus espetáculos lotados, ela impunha respeito não só pela voz poderosa como pela forte presença em cena.
Representar Ma, uma artista de curvas generosas, veio ao encontro da galeria de personagens que Viola quer construir. “Quero que todas as mulheres lá fora se sintam representadas, mesmo as que foram ignoradas (pela indústria do entretenimento) no passado”, disse ela.
E Viola não se refere apenas à mulher negra, ainda que ela se dedique na carreira a desafiar os clichês sobre os negros no cinema e na TV. “Se você não for loira, não tiver olho azul e não usar roupa tamanho pequeno, talvez não se sinta inserida na arena da feminilidade. Por isso, quero que a minha arte represente todas as mulheres, incluindo as esquecidas pela História”, contou a atriz.
Ma certamente merecia mais destaque no legado do blues. Afinal, no prazo de apenas cinco anos, período de seu contrato com a Paramount Records, foram quase cem canções gravadas. Suas músicas não só ajudavam a afirmar o orgulho negro como empoderavam as mulheres e já pregavam a diversidade de gênero.
“Saí ontem à noite com um grupo de amigos. Deviam ser todas mulheres, já que não gosto de homens”, já cantava ela na música “Prove It on Me” (1928).
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