Em setembro de 1654, 23 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, judeus sefarditas, provenientes da atual cidade de Recife, aportaram em Nieuw-Amsterdam, ou Nova Amsterdam. Tratava-se de um entreposto comercial modesto situado ao sul de uma ilha ao norte da América.
O lugar era chamado pelos nativos indígenas de Mann-ahata, ou Man-a-ha-tohn, termo que significa “ilha de muitas colinas” ou “lugar onde se colhe madeira para fazer arcos (de flechas)”. O termo se fixou como Manhattan, que até hoje designa a ilha principal da Nova York cosmopolita do presente.
Em torno do episódio circulam especulações e mitos, alimentados por folcloristas nordestinos e historiadores ibero-americanos, zelosos em valorizar o papel das Américas Portuguesa e Espanhola em territórios longínquos na conquista e no estabelecimento das rotas mercantis através do Atlântico.
O mais intrigante desses relatos é o de que o pequeno grupo emigrado do Brasil teria criado Nova York. Mas nada disso é preciso. Para esclarecer tais narrativas muitas vezes repetida, o jornalista cearense Lira Neto realizou uma pesquisa que durou 10 anos e resultou na publicação do livro “Arrancados da terra”, em lançamento da Companhia das Letras.
O subtítulo resume o enredo da obra: “Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e Fizeram Nova York”. O verbo “fazer” ressalta a imprecisão do fato. Até a publicação do livro, era comum considerar a chegada dos judeus como data fundadora. Mas o escritor desvenda o mistério.
Na verdade, como demonstra o autor, eles fundaram, sim, a primeira comunidade judaica na América do Norte em uma localidade ativa havia 29 anos. Para chegar à essa conclusão. Lira Neto, autor de biografias como as de Getúlio Vargas, Padre Cícero, Maysa, entre outros personagens, esteve pessoalmente nos lugares retratados na obra.
Segundo consta de lápides semiabandonadas no cemitério da St. James Square, onde surgem nomes de origem portuguesa, próximo ao terminal que leva e traz turistas à Estátua da Liberdade, o cemitério foi construído em homenagem “a aqueles que fundaram a primeira comunidade judaica na América do Norte” – e não a supostos pioneiros de Nova York.
“Quem eram afinal de contas, as tais 23 pessoas?”, pergunta-se Lira Neto em seu 13º livro. “Em que navio chegaram? Seriam mesmo procedentes do Brasil, como muitos querem crer?” E continua: “É possível estabelecer, com solidez de fontes, suas identidades e reconstituir suas respectivas trajetórias? Ou tudo não passaria de uma epopeia tão heroica quando inverídica, contrafação histórico, mito de origem, como querem pesquisadores mais céticos?”
É a tarefa que ele se impôs, lançando mão de fontes vastas e detalhes inéditos. Não seria preciso ler tantos documentos para pôr em dúvida a narrativa consagrada. Basta examinar as datas. A nação holandesa fundou um porto em Nova Amsterdam, com patrocínio da Companhia das Índias Ocidentais, o empreendimento de conquista de mercados que resultava da associação de grandes negociantes com a coroa da Holanda.
A parceria inovadora, que conciliou as ambições do Estado Monárquico dos países baixos ao capital mercantil para exportação e importação de produtos revelou-se fundamental pelas conquistas holandesas de territórios nas Américas, que se iniciaram em 1624, com a tomada do porto de Salvador, e rumou a outras terras.
O auge da empreitada se deu com a conquista dos territórios pertencentes à coroa hispano-portuguesa, com a tomada da área leste da Capitania de Pernambuco em 1630. Na época, as terras pertenciam à Espanha, que reinava sobre Portugal desde 1580, inclusive com a adoção da Santa Inquisição para perseguir judeus (Portugal até então era tolerante à diversidade religiosa), mas passava por perdas monetárias devido às derrotas da Armada de Felipe II, para a Inglaterra e a Holanda.
Portugal retomou a soberania em 1640, quando os holandeses já haviam se instalado em parte da capitania de Pernambuco e arredores. O objetivo do governo holandês e da Companhia das Índias era explorar o açúcar, o produto então mais valorizado no sistema mercantilista. Como a mão de obra se revelou escassa na área rural, tornava-se inevitável se associar aos proprietários de canaviais e usinas de cana locais e adotar a escravidão.
Os sefarditas expulsos de Madri e Lisboa foram chamados a colaborar com a nova civilização, comandada pelos protestantes de Amsterdam, uma capital que praticava uma relativa tolerância religiosa, apesar da virulência da elite calvinista contra os “hereges”. Os negociantes da comunidade prestavam serviços para a Companhia das Índias como cobradores de impostos e incentivadores do comércio de açúcar – eles passaram a explorar também a escravidão de negros e indígenas.
Isso passou a ocorrer após 1637, com a chegada do novo governador Maurício de Nassau, um duque e militar alemão tão vaidoso que rebatizou Recife de Cidade Maurícia. A convite de Nassau, exportadores açucareiros, como Menasseh Ben Israel e o coronel Senior Navarro, fundaram a Jodenstraat (rua dos Judeus) no centro da capital.
Ali, ele outros pares construíram suas casas, segundo o modelo de sobrados de três andares típicos de Amsterdam, e formaram a primeira sinagoga das Américas, a Kahal Zur Israel (Congregação Rochedo de Israel), até hoje em funcionamento. A eles se juntaram artesões, comerciantes, caixeiros e notários. Os mais pobres, não moravam na Jodenstraat, e sim em casebres miseráveis fornecido pela Companhia, próximos dos prostíbulos.
Lira Neto conta que o Conselho Político do Recife via nesses estabelecimentos um perigo para os colonos. O órgão chegou a intensificar a maior vigilância sobre os habitantes da região. “Muitas prostitutas estrangeiras eram conhecidas por seus apelidos em português: Maria Cabelo de Foto, Chalupa Negra, Cristinazinha e Admirável”, descreve Lira Neto. Em nome do incremento de uma vida urbana próspera, Nassau fazia vistas grossas a esses hábitos pouco religiosos.
A derrota holandesa só pôde acontecer porque os senhores de engenho locais se revoltaram com a crescente cobrança de impostos e planejaram a chamada revolta nativista que teve como marco a Batalha de Guararapes, em 1649 e culminou com a assinatura da capitulação da Holanda em 1654, resultante da negociação que o historiador Evaldo Cabral de Mello apelidou de “O Negócio do Brasil”, resultante da revenda do território aos portugueses.
O acordo tornou a expulsão menos chocante. O governo português deu três meses para os holandeses e colaboradores, inclusive os sefarditas, para encerrar negócios, recolher bens e zarpar em centenas de navios, dezesseis deles cedidos pelo rei de Portugal. Os que permanecessem sofreriam as penas da Santa Inquisição.
A partir de então, iniciou-se a triste viagem de cerca de 150 famílias, seiscentos cidadãos que embarcaram tanto para Amsterdam como as demais colônias holandesas. O pesquisador supõe que foram os passageiros do navio Valk que desembarcaram em Nova Amsterdam. Não sem serem atacados e roubados por piratas no mar das Caraíbas. Só foram resgatados pelos espanhóis que governavam a Jamaica.
Lá, os náufragos, foram forçados a ir embora. Às pressas, contrataram o navio francês do comandante Jacques de La Motte e chegaram ao local de destino. Não deixaram de experimentar mais revezes. Revelaram ao capitão do navio que não tinham como saldar as dívidas, o que fez La Motte conseguir prender os líderes do grupo e mantê-los em masmorras. Só foram liberados quando a Talmude Torá, autarquia que administrava a vida dos judeus em Amsterdam, enviou o dinheiro.
A Holanda seguia próspera. É preciso lembrar que, depois da expulsão do Brasil, os holandeses passaram a investir no açúcar na região das Antilhas. Logo os produtores brasileiros não suportaram a concorrência comercial imposta pelo açúcar antilhano – e o peço do açúcar de Pernambuco caiu em 50% e quebrou o ciclo lucrativo do açúcar.
Nova Amsterdam, porém, não foi a terra prometida que os judeus buscavam. Por duas décadas, a vida deles foi difícil, com perseguições de fundamentalistas protestantes e cobranças de impostos abusivas por parte do intendente local. Ele determinou que os judeus construíssem uma paliçada para separar seu cemitério da zona urbana da cidade.
A construção levou o nome de Rua da Muralha (Wall Street). Curiosamente, o desenho dessa paliçada corresponde ao local onde se localiza o distrito financeiro de Nova York. “A situação dos judeus só melhorou quando os ingleses rechaçaram os holandeses em 1674”. Foi quando a cidade foi rebatizada como New York, em homenagem ao primeiro latifundiário inglês, natural de York, que comprou terras por lá.
Sob o governo de Londres, comunidades religiosas diferentes puderam viver em relativa harmonia. Em 1730, os israelitas receberam permissão para fundar a primeira sinagoga de Nova York. As ondas migratórias e a adesão dos judeus à luta pela independência americana os credenciaram a colaborar na conversão da velha Manhattan em um dos centros da riqueza mundial.
Nem todos os judeus no Brasil puderam escapar, por vários motivos, inclusive financeiros. Aqueles que permaneceram se embrenharam no sertão, fugindo da perseguição. Lá, mantiveram seus costumes às escondidas.
Segundo Lira Neto, eles deixaram de ter razão de ser. “Dissolvidos no imaginário coletivo, tais hábitos perderam a função original, embora continuem a ser praticados em nome de uma tradição da qual não se conhecem mais os imemoriais sentidos de origem”, afirma.
Arrancados da terra: Perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e Fizeram Nova York, Lira Neto, Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 63,13 (livro) e R$ 39,90 (e-book).