O departamento de contabilidade de um banco pode não oferecer o ambiente mais propício para ocorrer alguma coisa mais agitada que bocejos e discussões sobre planilhas. E se essa instituição financeira tem sede na Suíça, então, a probabilidade de qualquer turbulência ali se torna ainda mais remota.
Mas é esse o local que o escritor Joël Dicker escolheu para povoar de personagens e decifrar a autoria de um assassinato no romance “O Enigma do Quarto 622” (Intrínseca, 528 páginas, R$ 64,90 o livro impresso e R$ 44,90 o digital).
A ambientação pouco usual para uma história desse tipo fez sucesso. O livro foi lançado em meados de 2020 na França, vendeu imediatamente 500 mil exemplares e se tornou a história de suspense de maior êxito da temporada na Europa.
Trata-se do quinto título policial de Dicker, um advogado tributarista de 35 anos, natural de Genebra, onde mora desde criança. Hábil em contabilidade, ele já prestou serviços para corretoras, bancos e autarquias do governo, mas resolveu se dedicar à literatura.
Dicker se diz admirador do romance americano do século XX de Philip Roth, John Updike e Don De Lillo. “Esses autores me influenciaram tanto que ambientei alguns de meus romances nos Estados Unidos”, diz.
Embora tenha morado somente por alguns meses nos Estados Unidos, Dicker exibe uma intimidade com o american way of life, do qual ele fez saborosas sátiras sociais, sobretudo em torno da forma como a acumulação de riqueza pode resultar em enredos turbulentos, caso as fortunas não sejam administradas segundo regras de compliance.
Em 2012, Dicker lançou o seu segundo romance no gênero, “A Verdade sobre o caso Harry Quebert”. A trama se passa em uma cidade litorânea de New Hampshire e trata de um escritor famoso, suspeito pelo assassinato de uma jovem e envolvido em escândalos financeiros.
O livro foi finalista do prêmio Goncourt e vencedor do Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa. Os severos críticos francófonos destacaram a capacidade de Dicker em misturar suspense e sátira social e armar conflitos com a precisão de um relojoeiro suíço, por mais que a imagem soe como lugar comum.
“Harry Quebert” vendeu mais de um milhão de exemplares somente nos Estados Unidos e inspirou uma minissérie homônima estrelada por Patrick Dempsey e disponível no Brasil no serviço de streaming Globoplay.
Seus demais títulos giram em torno da combinação entre a sedução pelo mistério, as referências literárias e o tilintar de moedas. São eles “Os últimos dias de nossos pais”, “O livro de Baltimore” e “O desaparecimento de Stephanie Mailer”. A soma de todos os livros atinge 10 milhões de cópias vendidas mundialmente.
Até ter a ideia de publicar “O Enigma do Quarto 622”, Dicker não tinha imaginava que a Suíça pudesse interessar o público leitor ou o espectador. “O única programa suíço que eu gosto de ler é a previsão do tempo”, afirma Dicker. “Ali acontece alguma agitação, entre nevascas, temporais e soterramentos.”
O romance novo marca uma virada, pois ele se viu capaz de arrancar cobras, lagartos e estiletes do universo das organizações financeiras à beira do idílico lago Léman, onde o único movimento visível é o jorro do enorme chafariz, o ponto turístico da cidade. No mais, a bela vista do lago parece suavizar qualquer confronto possível.
“A Suíça é um ambiente aparentemente sonolento”, afirma Dicker. “Mas é sempre possível extrair histórias incríveis até de universos desse tipo.”
“O Enigma do Quarto 622” tem como pano de fundo a luta sucessória em um banco privado em Genebra, o tradicional Banco Ebezner. Quando morre o fundador Abel Ebezner, seu filho Macaire esperava por uma sucessão natural. Mas se vê preterido por um profissional mais aplicado e escrupuloso, Lev Levovitch.
O narrador é um jovem escritor de sucesso chamado Joël. Ele tira férias em um luxuoso hotel nas montanhas, e acaba se hospedando em um quarto com número estranho: 621 bis. Na realidade, o número foi alterado porque nele foi descoberto o cadáver de um primo de Macaire, Jean-Bénédict, executivo do banco que também estava na disputa pela presidência.
Circulam pelas mais de 500 páginas do livro grupos de operadores da bolsa de valores, tribos rivais de banqueiros e corretores inescrupulosos. Isso sem contar uma aristocrata russa, Olga, viúva de um oligarca interessada em “casar bem” suas duas filhas.
Uma das dificuldades para solucionar o crime está no fato de os personagens bilionários não demonstrarem nenhuma emoção, e assim preservar a etiqueta e a elegância, bem à maneira suíça. Nenhum deles se decompõe ou se deixa pilhar por perguntas capciosas de investigadores. Os dramas entre os personagens são velados e inconfessáveis como uma conta secreta. Uma Agatha Christie sofreria para contar histórias nesse clima de disfarce.
Com as vendas do livro, Dicker planeja agora apostar em um gênero que ele descobriu conhecer como ninguém e praticamente lançou: o policial financeiro genebrino.