O surgimento do economista francês Thomas Piketty no debate público mundial, em 2014, ainda precisa ser revisto pelos pesquisadores da comunicação como um dos maiores vexames do jornalismo econômico mainstream.
O fato de o hoje best-seller planetário “O Capital no século XXI”, traduzido em mais de 40 idiomas e com vendas acima de 2,5 milhões de exemplares, revelar uma tendência consistente de concentração de riqueza no funcionamento do capitalismo contemporâneo e defender como remédio um imposto global sobre grandes fortunas e herança da ordem de 80%, fez os mais renomados veículos da imprensa internacional perderem a compostura, a ética e a exatidão e partirem para uma cobertura de desinformação muito antes de arvorarem-se contra opositores de fake news.
É conveniente lembrar esse triste episódio para o jornalismo sempre quando um novo livro do autor chega às livrarias, como agora com “Uma breve história da igualdade”, que acaba de ser publicado aqui pela Editora Intrínseca.
Essa lembrança é como um antídoto para interpretações equivocadas dos jornalistas de economia e dos leitores. The Economist (que o chamou de “Novo Marx”), Financial Times, Bloomberg passaram maus momentos de credibilidade por estarem mais preocupados em desqualificar a pesquisa de Piketty do que de analisá-la com a civilidade que deve ser dispensada a todo trabalho acadêmico.
Em 2019, quando lançou “Capital e ideologia” na França, Piketty já estava devidamente vacinado contra o vírus do mau jornalismo. A recepção ao seu novo calhamaço [quase 1.200 páginas, parelho ao primeiro livro] foi mais fria, porém, ganhou muito em qualidade.
É curioso verificar que os mesmos jornalistas que atacaram “Capital no século XXI” haviam perdido o fôlego para encarar as novas descobertas e reflexões de Piketty, justamente no momento em que o mundo se rendia à sua sugestão de adotar programas de transferência direta de renda – embora o autor, (em entrevista que fiz com ele, em 2013, portanto, antes de seu sucesso mundial), tenha afirmado que sempre dará preferência à adoção de um sistema tributário progressivo (apesar de uma medida não anular ou dispensar a outra no árduo combate à desigualdade).
Ou os jornalistas e veículos de economia perderam o medo do “Novo Marx” e do “comunismo” ou ficaram, de fato, envergonhados (sem nunca reconhecerem o erro) quando viram governos liberais se “pikettyzarem”, sobretudo depois da pandemia de Covid-19.
Ou os jornalistas e veículos de Economia perderam o medo do “Novo Marx” ou ficaram envergonhados quando viram governos liberais se “pikettyzarem”, sobretudo depois da pandemia de Covid-19
O trabalho de Piketty, porém, é muito mais complexo do que a busca por cliques ou a necessidade de fazer eco à voz do “mercado”. No entanto, embora best-seller, o autor permanece confinado aos muros da universidade. Com exceção do slogan do Occupy Wall Street - “I’m 99%” - que apareceu em várias placas dos manifestantes, pouco da teoria de Piketty chegou às ruas. Salvo impulsionar o debate sobre a desigualdade.
Mas mesmo o slogan citado ninguém sabia que teve origem em seus trabalhos, apesar de Joseph Stiglitz, a quem o slogan foi atribuído, tenha revelado a legítima autoria (ok, em uma nota de rodapé).
É preciso um profundo – profundíssimo – conhecimento econômico, histórico, sociológico, antropológico para dar conta da totalidade de seus argumentos e, talvez, oferecer alguma crítica ou reflexão. Isso, até hoje, como visto, é um limitador para se entrar no debate. Quebrar essa barreira é a intenção de Piketty, agora, com seu “Uma breve história da igualdade”.
O autor se propõe a escrever justamente para aqueles que jamais tiveram a coragem de enfrentar suas verdadeiras “bíblias” anteriores. Ou talvez que, antes de fazê-lo, precisam frequentar aulas de alinhamento. Pode ser válido. Inclusive para jornalistas econômicos. Nem sempre Piketty, nesse livro, é tão simples quanto imaginou ser, no entanto, incomparavelmente, o livro é bem mais acessível e conta a mesma história dos livros anteriores.
O autor se propõe a escrever justamente para aqueles que jamais tiveram a coragem de enfrentar suas verdadeiras “bíblias” anteriores
O leitor mais familiarizado com a obra de Piketty perceberá um amadurecimento de determinados pontos teóricos que vão se tornando identificadores de seu pensamento sobre a desigualdade social e a condição sine qua non para o mundo avançar no que ele chama de “marcha rumo à igualdade” – a qual, aliás, para ele, o mundo está condenado. Ainda bem. Embora as desigualdades continuem a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis, como sabemos, o leitor encontra um autor muito mais otimista. E quem não está precisando?
Piketty, como sublinha desde os seus primeiros trabalhos acadêmicos e foi quase uma pedra fundadora de sua linha de pesquisa, destaca a importância da “forte pressão demográfica” em toda a história da igualdade (ou da desigualdade) e como o envelhecimento populacional jogará um papel de destaque no decorrer dessa marcha da humanidade.
E seus dispositivos de apoio para torná-la efetiva são: a democracia (sufrágio universal, liberdade de imprensa, direito internacional), o imposto progressivo sobre herança, renda e propriedade, a educação gratuita e obrigatória (e ele defende agora que deve ser “complexa e interdisciplinar”), a saúde universal (alçada nesse livro a um posto bem maior) e a cogestão empresarial junto ao direito sindical.
Embora as desigualdades continuem a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis, o leitor encontra um autor muito mais otimista. E quem não está precisando?
Esse último ponto merece uma atenção especial. Desde “Capital e ideologia”, Piketty explora esse ponto como indispensável dentro de qualquer perspectiva de distribuição de riqueza. De acordo com ele, no atual “hipercapitalismo”, o modelo de administração por gestores ou CEOs remunerados por bonificação e, portanto, centrados apenas no retorno sobre o investimento aos acionistas é um dos maiores estorvos à igualdade.
Sua proposta é a transição para um “socialismo participativo” (como ele usou em “Capital e Ideologia”) ou “socialismo democrático, ecológico e diversificado” (que ele acrescenta agora), baseado em uma “propriedade mista” onde haverá propriedade pública, social e temporária. Dessa forma será possível superar a dicotomia entre o modelo estatal (soviético) versus modelo capitalista (norte-americano).
A forma de se instaurar a propriedade temporária é o sistema tributário progressivo, pois, com mais recursos o Estado distribuiria a riqueza por meio de programas de transferência de renda, a começar pelos jovens.
A forma de se instaurar a propriedade temporária é o sistema tributário progressivo, pois, com mais recursos o Estado distribuiria a riqueza por meio de programas de transferência de renda, a começar pelos jovens
O público leigo desconfiado, com razão, de projeções ou promessas econômicas pode até receber as “utopias” de Piketty com ceticismo. Mas a leitura de “Uma breve história da igualdade” é menos teoria e mais uma aula da evolução do pacto social, com suas crueldades, como a herança da escravidão, seus privilégios legitimados pela ideologia e suas revoluções e reações.
Antes da “marcha da igualdade”, atestada por Piketty, precisamos entender o que permitiu a Humanidade dar os primeiros passos. Nada foi conquistado sem luta social e o leitor tem no livro um bom resumo dessa lenta desconcentração do poder e da propriedade.
O prognóstico do autor é de que, sendo a desigualdade uma construção política a partir de escolhas históricas, como os sistemas tributário, educacional e eleitoral, outras mobilizações transformadoras serão suscitadas pela injustiça social. Mesmo que isso ainda dependa muito do papel da imprensa, Piketty insiste que outro mundo é possível, embora ainda incerto.
Jorge Félix é jornalista e professor doutor de Economia e Finanças em Gerontologia da USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades) e da pós-graduação Economia, Mídia e Sociedade na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP), pesquisador Fapesp e Fiocruz, autor de "Economia da Longevidade" (Editora 106)