Foram precisos quase 75 anos para que Violante Saramago Matos contasse ao mundo sua relação com o pai, José Saramago, único Prêmio Nobel da Literatura da língua portuguesa, autor de o "O Evangelho segundo Jesus Cristo" e "Ensaio sobre a Cegueira", entre tantos outros livros clássicos.

Dia 22 de outubro, ela fará uma palestra em São Paulo a convite da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano em comemoração ao centenário do escritor que nasceu em novembro de 1922 no vilarejo português de Azinhaga.

No início deste ano, Violante publicou “De Memórias nos Fazemos” em Portugal, livro em que relata episódios e vivências com o pai e que deverá chegar ao público brasileiro pela editora Rua do Sabão para coincidir com sua presença aqui.

Na mesma data também será lançada a obra “Saramagos – 100 anos de José”, com apenas 350 exemplares e fora do comércio, que foi concebida e produzida pela Fundação Maria Luisa e Oscar Americano para celebrar a data.

O livro tem 200 páginas e contém textos de Fernando Meireles, Maria Adelaide Amaral, Fernanda Montenegro, de historiadores como Mary Del Priori e o acervo fotográfico de Violante, que partilha um pouco de seu convívio familiar.

O espólio do escritor (cartas, manuscritos, documentos), por vontade dele, foi entregue à Biblioteca Nacional de Portugal. Violante divide com Pilar del Rio, sua última mulher, e com a Fundação José Saramago os direitos das obras que continuam a ser reeditadas em todo o mundo.

Única filha de Saramago, Violante é fruto do primeiro casamento com a artista plástica Ilda Reis, que durou 26 anos, que também é personagem consagrada no meio cultural português.

Para construir uma identidade própria formou-se em biologia e mudou-se para a Ilha da Madeira onde tem um programa de rádio, escreve para um jornal local e é ativista social. “Eu pinto e escrevo mas apenas como formas de expressão, não sou pintora nem escritora”, diz Violante.

Leia os principais trechos desta entrevista exclusiva ao NeoFeed.

Por que tantos anos de silêncio sobre teu pai?
O silêncio corresponde aos anos em que fui construindo minha vida. Nunca tive interesse de dizer: "sou filha de". Não faz parte de mim. Há diferentes formas de lidar quando se tem pais conhecidos. No meu caso, precisei me resguardar da presença deles, do peso deles, e tentar construir minha vida a partir do que eles me ensinaram. Procurei ser autônoma, sem ninguém dar por mim, digamos assim. Casei, tenho filhos, netos.

E por que você resolveu falar agora?
Agora estamos no centenário, a situação é diferente porque já tenho um projeto de vida que é meu e não decorre nem do fato de ser filha da Ilda Reis (Prêmio Europeu das Artes e das Letras) e do José Saramago. Em função do centenário, havia uma quantidade enorme de homenagens programadas por instituições, academias, grupos de leitores e percebi que não fazia muito sentido ficar sem dizer coisas que já tinha vontade de dizer.

Como o que, por exemplo?
Há todo um percurso de vida dele do qual eu sou a última testemunha: de serralheiro a datilógrafo até chegar aonde chegou. No meio disso apareço eu, não é? O que os obriga, entre aspas, a saírem de uma condição profissional que era baixa para me educarem de uma forma que hoje considero exemplar, seja no afeto ou na pedagogia. Ele não nasceu em 1976, quando decidiu tentar viver da escrita. Foi um processo de quase 60 anos de amadurecimento, estudo, pensamento.

"Há todo um percurso de vida dele do qual eu sou a última testemunha: de serralheiro a datilógrafo até chegar aonde chegou"

Existe a ideia de que ele descobriu sua vocação tardiamente, mas o que você diz é que isso foi construído ao longo de muito tempo.
Ele publicou o primeiro livro “Terra do Pecado” em 1947, no ano em que nasci. Depois há os poemas e as traduções que foram dezenas, que foram fontes de enriquecimento e conhecimento. Lembro-me de sempre ver no chão ao lado dele muitos dicionários e enciclopédias.

Você já disse que, por ter uma origem humilde, teu pai não foi bem aceito na elite intelectual portuguesa…
Não podemos esquecer que estamos falando da época do fascismo em Portugal quando os intelectuais que não serviam o regime eram malvistos. Também era uma estrutura muito elitista: a maioria dos grandes escritores fazia seu percurso ligado à literatura, estudavam letras na faculdade. Ele foi trabalhar como serralheiro. Então, numa sociedade profundamente elitista como era Portugal na época, o aparecimento de uma pessoa que vinha de uma condição social e profissional completamente estranha, causava algum desconforto.

"Numa sociedade profundamente elitista como era Portugal na época, o aparecimento de uma pessoa que vinha de uma condição social e profissional completamente estranha, causava algum desconforto"

O mundo mudou ou continua havendo esse tipo de elitismo?
Acho que continua até hoje e que o mundo teve uma dualidade de comportamentos. Houve um período grande de processos democráticos e de respeito aos direitos humanos que se instalaram ou começaram a se instalar, mas temo que estejamos regredindo de uma forma muito rápida, que vai exigir dos cidadãos uma tomada de consciência. Creio que estamos num daqueles períodos que são de certa forma cíclicos nas sociedades que são as luzes e as trevas.

Nada linear...
Nada disso é linear e quando está tudo escuro, as gerações são obrigadas a encontrar outro caminho, novas estratégias. No Brasil, isso também aconteceu em função da ditadura. Agora, ninguém esperaria que num país como a Itália um partido neonazista ganhasse as eleições. Não é um Mussolini de armas e fardas, é uma mulher cordial, bem apresentada, mas que lá dentro é exatamente a mesma coisa. Não são coisas simples de explicar. No resto do mundo, as coisas não estão melhores. Não há caminho para a erradicação da pobreza, não cresce a solidariedade, aumentam os conflitos étnicos e religiosos e se agrava a situação ecológica. Não estamos num bom caminho.

Como teu pai soube lidar com o pouco e com o muito em termos de dinheiro?
No início, não sobrava dinheiro em casa. Quando ele ganhou o Nobel já era um escritor que vivia da escrita. Ele nunca foi pessoa que se deslumbrasse nem com as honrarias nem com a conta bancária. Se ele não tornou público também não vou fazê-lo, mas sei de montantes significativos de dinheiro que entregou a organizações que procuram a paz, lutam pelos direitos humanos e pela democracia. Não acho que ele tenha mudado muito de vida apesar das melhores possibilidades econômicas. O fausto nunca esteve em cima da mesa lá em casa.

"Ele nunca foi pessoa que se deslumbrasse nem com as honrarias nem com a conta bancária. Sei de montantes significativos de dinheiro que entregou a organizações que procuram a paz, lutam pelos direitos humanos e pela democracia"

O que você espera da palestra em São Paulo?
Que se meu pai fosse vivo e pudesse assistir, não ficaria envergonhado. Digo sinceramente, não é figura de retórica.

Foi muito difícil ser filha dele?
É que não tive só um pai importante, foram os dois e isso dificulta a vida se a gente não quer que nos digam que tudo o que conseguimos foi utilizando o nome deles. Disso, ninguém pode me acusar. Há muitos anos tenho uma imagem de mim. Imagino sempre duas ruas que são eles e essas ruas se cruzam. No encontro das duas estou eu, que sou o prédio de esquina entre eles. Para ganhar identidade, o prédio não pode pertencer a nenhuma.

Serviço:
Programação da Série Literária dia 22 de outubro
Fundação Maria Luisa e Oscar Americano
10 às 12 hs - Violante Saramago Matos
14 às 15:30 hs - Autobiografia por José Luis Peixoto
15:30 às 17 hs - Meu Saramago Preferido: Leituras de Saramago no Brasil - Andrea del Fuego, Claudia Lage e Manuel da Costa Pinto
(R$ 200 inteira e R$ 100 meia)
www.sympla.com.br