Todo produtor de espumante sonha com Champagne. A exceção fica por conta das vinícolas situadas nessa região francesa, que conseguiu a proeza de emprestar seu nome à bebida – e impedir os produtores de qualquer outro canto do mundo de usar esse termo, hoje sinônimo de qualidade e requinte.
A restrição se deve à célebre Appellation d'Origine Contrôlée instituída na França em 1936. Graças a ela, os champagnes foram apartados de seus pares e passaram a ser vistos como espumantes fora de série (e alguns são mesmo).
Na Serra Gaúcha, a região de Pinto Bandeira também sonhava com uma denominação de origem para distinguir seus espumantes. No dia 29 de novembro, o sonho foi concretizado. Desde então, a região é a única do Novo Mundo a dispor de uma certificação exclusiva para espumante.
A novidade impõe uma série de regras para a produção da bebida entre Pinto Bandeira, Farroupilha e Bento Gonçalves. Vale só para uma área contínua que soma 65 quilômetros quadrados, onde se encontram as vinícolas Geisse, Don Giovanni, Valmarino e parte da Aurora, entre outras. O nome da certificação – Denominação de Origem (DO) Altos de Pinto Bandeira – se deve à altitude média dos terrenos: 632 metros.
Chardonnay, Pinot Noir e Riesling Itálico são as únicas uvas que podem ser utilizadas, desde que cultivadas na região. Mais: a colheita mecânica está proibida e o sistema de condução das videiras em espaldeira é o único admitido.
O uso de barricas de carvalho está liberado e o único método de elaboração com sinal verde é o champenoise, no qual a segunda fermentação ocorre dentro das garrafas. No caso, com tempo de guarda de no mínimo doze meses. E ainda há outras especificações, a exemplo das que regulam os rótulos.
Só os produtores que seguirem todas as regras à risca poderão ostentar o selo da DO. Entusiastas da novidade, Geisse, Don Giovanni, Valmarino e Aurora já se dobraram às normas e os primeiros rótulos delas com a certificação devem chegar ao mercado no primeiro semestre de 2023.
A Geisse, por exemplo, tem 50 hectares de vinhedos e produz 500 mil garrafas de espumante por ano. Já a Don Giovanni possui 14 hectares de vinhedo e finaliza 150 mil espumantes a cada ano.
Há meia dúzia de outras vinícolas na região, no entanto, que ainda não sabem se vão aderir ou não, além de uma grande quantidade de pequenos produtores de uva. Em tempo: os espumantes locais continuarão a ser chamados de espumantes.
Referendada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a certificação começou a ser pleiteada pela Associação dos Produtores de Vinho de Pinto Bandeira (Asprovinho) em 2012. A demora se deve à burocracia, em parte, e à quantidade de entidades envolvidas no processo – da Embrapa ao Sebrae.
“Toda denominação de origem demora para ser conquistada porque não basta identificar as singulares de uma região, é preciso obter respaldo científico e criar regras para todos”, disse ao NeoFeed Daniel Geisse, que preside a Asprovinho.
Não é de hoje que os espumantes brasileiros, sobretudo os que brotam na região de Pinto Bandeira, são considerados excelentes. Mas eles ainda estão longe de ameaçar o reinado dos chamados vinhos tranquilos.
No ano passado, o Rio Grande do Sul comercializou cerca de 30 milhões de litros de espumante – e mais de 232 milhões de litros de vinhos tranquilos, considerando tanto os finos como os mais populares.
Os espumantes verde-amarelos também não parecem tirar o sono dos importados. Neste ano, o Brasil movimentou US$ 2,7 milhões com a exportação dos primeiros. Já o volume das versões importadas ultrapassou US$ 25 milhões.
“Essa DO norteia não só as vinícolas locais, que vão ganhar mais reconhecimento, como a região como um todo”, diz Daniel Panizzi, que comanda a Don Giovanni e preside a União Brasileira De Vitivinicultura (Uvibra). “Até os produtores de uva tendem priorizar as castas indicadas pela certificação”.
Para Daniel Gesse, a recente conquista deverá impulsionar as vendas dos espumantes locais tanto no mercado interno quanto no exterior. “Certificações do tipo, no longo prazo, agregam muito valor aos rótulos”, afirma. “Sinalizam, afinal, que as vinícolas optaram por dar mais atenção à qualidade do que ao volume produzido”.
Toda denominação de origem é uma referência para os consumidores, pondera ele. “A nossa poderá fazer com que os brasileiros tenham tanto orgulho da região como os franceses têm de Champagne”.
Daniel é filho de um dos primeiros enólogos a apostar em Pinto Bandeira, o chileno Mario Geisse. Em 1976, ele deixou seu país para dirigir a Chandon do Brasil, sediada na Serra Gaúcha. Veio certo de que a região não teria a menor vocação para a produção de espumantes.
Não demorou a mudar de ideia e a ponto de arrematar 3 hectares, em 1979, para plantar uvas e vendê-las a produtores de espumantes. O negócio deu origem à vinícola Geisse, a única da América do Sul a ter um rótulo incluído no livro “1001 Vinhos Para Beber Antes De Morrer”, de Hugh Johnson.
“Na minha opinião, depois de Champagne, a melhor região do mundo para produzir espumante é a Serra Gaúcha”, declarou Mario Geisse, mais de uma vez.
O terroir local, e sobretudo o de Pinto Bandeira e arredores, favorece a produção de uvas perfeitamente maduras, sem amargor algum, com boa acidez e baixo teor de açúcar. Essa última característica propicia a formação de pouco álcool na primeira das duas fermentações a que todo espumante, tirando os moscatéis, deve ser submetido.
O resultado são espumantes fora de série – que, com a denominação de origem recém-conquistada, podem um dia ficar tão conhecidos como os proseccos ou os champagnes.