Desde dezembro de 2022, os escândalos contábeis que levaram a empresa alemã de pagamentos Wirecard a pedir falência, em 2020, estão no centro de um julgamento em um tribunal de Munique. Um dos nomes sob os holofotes no banco dos réus é Markus Braun, ex-CEO da companhia.
Entre outras questões, o julgamento envolve acusações de fraude, peculato e manipulação contábil e de mercado. E a expectativa é que o processo se estenda, pelo menos, até 2024. Mas, nessa intrincada trama, já há quem esteja sendo penalizado.
Esse é o caso da EY. Um dos nomes que integram o grupo seleto chamado de “big four”, que reúne as principais empresas globais de auditoria, a companhia foi proibida de fechar novos contratos com empresas listadas na Alemanha por um prazo de dois anos.
Anunciada pela Apas, órgão de fiscalização de auditorias do país, a medida estabelece ainda uma multa de € 500 mil à empresa, além de um montante entre € 23 mil e € 300 mil para cada um dos cinco funcionários da companhia envolvidos no imbróglio da Wirecard.
A decisão foi anunciada na segunda-feira, 3 de abril. Em nota, a Apas informou que considerou como comprovadas “as infrações aos deveres profissionais” as auditorias da Wirecard e do Wirecard Bank realizadas pela EY, entre 2016 e 2018.
Em comunicado, a EY disse que examinaria cuidadosamente a decisão da Apas e lamentou que a fraude na Wirecard não tenha sido descoberta antes. A empresa acrescentou que aprendeu “lições importantes” com o caso e que implantou ações significativas para melhorar sua atuação.
O fato é que, mesmo antes da sanção imposta pela Apas, a EY acabou perdendo uma série de clientes de auditoria no país após o escândalo da Wirecard se tornar público. Commerzbank, DWS e KfW foram algumas das empresas que deixaram a sua carteira.
Segundo pessoas familiarizadas com a avaliação da Apas ouvidas pelo jornal Financial Times, ainda não há uma decisão formal se houve dolo ou negligência no trabalho conduzido pela companhia. E essa será uma questão-chave para estabelecer as responsabilidades criminais e civis da empresa.
“A proibição de dois anos é uma sanção bastante severa, que nunca vimos na Alemanha”, afirmou Klaus-Peter Naumann, presidente do IDW, instituto de auditores públicos da Alemanha, ao jornal britânico.
A punição à EY acontece na esteira de outras medidas de endurecimento da regulamentação do setor no país. Após o escândalo da Wirecard, a Apas e a BaFin, a “CVM” da Alemanha, passaram a ter mais poderes e o governo local dobrou a sanção máxima por má conduta profissional para € 1 milhão.
O caso Wirecard
No caso da Wirecard, em 2020, a Apas fez uma queixa criminal contra diversos sócios da EY, com base em evidência de que a empresa pode ter emitido conscientemente pareceres incorretos de auditoria da operação. A denúncia segue em investigação e ainda não há uma acusação formal.
Entretanto, a EY foi criticada pelo juiz que preside o processo envolvendo o ex-CEO Markus Braun e executivos da Wirecard. De acordo com o magistrado, a empresa, que prestou serviços à companhia de pagamentos por mais de uma década, nada fez diante das evidências de fraude na operação.
A Wirecard pediu falência em junho de 2020, com uma dívida de US$ 4 bilhões e após divulgar que metade de sua receita de € 1,9 bilhão não existia. Antes do escândalo, a empresa chegou a valer € 28 bilhões, mais do que o Deutsche Bank, e foi uma das grandes promessas entre as startups alemãs.
Os problemas da companhia começaram a vir à tona em 2015, quando o Financial Times publicou uma série de reportagens sobre a empresa, com base em documentos e pistas sobre o esquema de vendas forjadas e manipulação dos balanços da companhia.
A série rendeu o livro “Money Man – A Hot Startup, a Billion Dollar Fraud”, de autoria do jornalista Dan McCrum, além do documentário “O Escândalo da Wirecard”, produzido pela Netflix e que foi lançado pelo serviço de streaming em setembro de 2022.
Na época da publicação do material, a Wirecard negou todas as acusações. Seu CEO, Markus Braun propagou o discurso de que as reportagens iam ao encontro de um plano dos investidores que operam em posição vendida – alugam ações e depois vendem. A ideia seria fazer o preço dos papéis desabar para, posteriormente, recomprá-los mais baratos.
Nos bastidores, esse discurso foi acompanhado e apoiado por medidas como a montagem, por parte da Wirecard, de uma rede para espionar investidores, McCrum e outros funcionários do Financial Times.
Essa trama começou a ser desmontada, porém, em 2019, quando a empresa recebeu um aporte de US$ 1 bilhão do Softbank. Com novas reportagens questionar sua contabilidade e pressionada por investidores, a Wirecard contratou a KPMG, outra integrante das “Big Four”, para uma nova auditoria.
A KPMG não localizou US$ 2,1 bilhões referente às reservas da empresa, informação que foi confirmada posteriormente pela EY, o que precipitou o pedido de falência da Wirecard.