Califórnia - Natural de Nova York, mas criado em New Orleans, o músico americano Perry Chen passava longe de softwares, programação e computadores. Nos anos 2000, ele observava o nascimento do Napster, na época um programa de compartilhamento de músicas piratas, que marcou o começo de uma mudança tecnológica que afetou toda a indústria fonográfica.
Na época, Chen pretendia organizar um show durante o Festival de New Orleans, um dos eventos locais mais importantes do ano, mas seu desejo sucumbiu diante dos altos custos e da necessidade de pagar adiantado a artistas. "Eu queria muito trazer uma dupla de DJs austríacos, mas não tinha como arcar com o cachê integral antes da apresentação, da venda dos ingressos", relembra.
Sua frustração foi o combustível para o nascimento do Kickstarter, a primeira plataforma de financiamento coletivo do mundo (em inglês, crowdfunding). Chen, no entanto, só conseguiu tirar a ideia do papel em 2009 ao lado dos parceiros Yancey Strickler e Charles Adler. “Era algo que precisava existir e que eu e meus amigos com certeza usaríamos”, diz Chen.
O nascimento do Kickstarter, ao lado do aplicativo de transporte Uber e o site de hospedagem Airbnb, marca o surgimento da economia colaborativa (do inglês, sharing economy). As três empresas foram criadas quase ao mesmo tempo e tornaram-se símbolos de uma tendência que varreu o Vale do Silício e influenciou startups ao redor do mundo.
De uma forma simplificada, a economia compartilhada une pessoas físicas, geralmente desconhecidas entre si, que contratam de tudo. De um lugar para hospedar-se ou carros para locomover-se durante uma viagem de lazer ou de negócios até uma pessoa para dar uma volta com o seu animal doméstico.
Uma década depois, a economia compartilhada deixou de ser marginalizada e se tornou um grande negócio. É difícil estimar o quanto se movimenta por meio dela, mas grandes empresas já chegaram à bolsa e faturam bilhões.
São casos do Uber e da Lyft, que abriram o capital na Bolsa de Nova York neste ano. Outro exemplo é o do Airbnb, que tem planos de fazer o IPO ainda em 2019.
O Kickstarter, no entanto, seja talvez o empreendimento que leve mais a fundo o conceito de economia compartilhada. Seu modelo é bastante simples. Alguém que tem uma ideia e precisa de dinheiro vai até o site e diz quanto precisa para tirar o projeto do papel. Usuários doam recursos e, com o dinheiro, o “empreendedor” pode desenvolver seu produto ou serviço.
O nascimento do Kickstarter, ao lado do aplicativo de transporte Uber e o site de hospedagem Airbnb, marca o surgimento da economia colaborativa
Em dez anos, o Kickstarter arrecadou US$ 4,3 bilhões para mais de 165 mil projetos, que foram apoiados por quase 16,5 milhões de usuários, dos quais 5,3 milhões deles o fizeram mais de uma vez.
Os projetos que mais arrecadaram fundos usando a plataforma são ligados a games, design e tecnologia, que receberam US$ 1 bilhão, US$ 960 milhões e US$ 837 milhões, respectivamente.
"Apoiar um projeto é muito mais do que dar dinheiro a um criador e é completamente diferente do que comprar um produto numa loja, por vias tradicionais. Você está validando uma ideia e apoiando algo que realmente quer ver existir nesse mundo", explica um porta-voz da plataforma de financiamento coletivo.
Das campanhas que foram lançadas no Kickstarter, a mais arrebatadora foi a do Pebble Time Smartwatch, em fevereiro de 2015, que levantou US$ 20 milhões. Ela continua sendo o projeto mais "caro" da história da companhia. O smartwatch criado por Eric Migicovsky foi vendido para a Fitbit, em 2016, por US$ 40 milhões.
A segunda campanha a figurar na lista milionária é a do Coolest Cooler. Em julho de 2014, o projeto de Ryan Grepper cravou a marca de US$ 13,3 milhões.
Como é praxe no site, os apoiadores recebem alguns "mimos" por sua colaboração. Greeper prometeu a eles uma versão customizada do Coolest Cooler. O problema é que o empreendedor calculou que cada unidade custaria cerca de US$ 175, mas descobriu rapidamente que precisaria vender o produto por US$ 400 se quisesse ter algum lucro.
Anos após o encerramento da campanha milhares de pessoas ainda esperam por seu cooler. A Justiça de Oregon chegou a investigar a empresa de Grepper, mas a batalha legal teve fim num acordo firmado em 2017, quando ficou definido em juízo que alguns apoiadores receberão uma parte do lucro da empresa – quando ela passar a operar no azul, claro.
Mudanças de fora para dentro
Desde o início de suas operações, o modelo de negócios do Kickstarter quase não mudou. Para levar uma campanha ao ar, o criador precisa estar em um dos quase 20 países onde a plataforma opera, ter mais de 18 anos ou o apoio legal de um adulto, e submeter a ideia e documentação para aprovação. O lucro da empresa provém dos 5% cobrados das campanhas que batem suas metas, além da pequena taxa de processamento de pagamento, que pode variar de 2% a 5%.
Cinco anos após fundar a empresa, Chen decidiu deixar o cargo de CEO e ficar apenas como conselheiro. Numa viagem familiar à Florença, na Itália, porém, o empreendedor passou a questionar a razão de tudo aquilo. Para ele, o dinheiro nunca foi o principal objetivo de seus sócios e não deveria ser, também, de quem ali trabalhava.
O projeto que mais arrecadou no Kikcstarter foi o relógio inteligente Pebble Time Smartwatch, que levantou US$ 20 milhões
Em centenas de troca de e-mails com os outros cofundadores, o Kickstarter passou por uma autoanálise que culminou com a companhia se assumindo como uma public-benefit corporation (corporação de benefício público, em tradução literal), o que significa que está mais interessada em gerar impacto social do que maximizar o lucro de seus acionistas.
A partir daí, o Kickstarter adotou uma série de estratégias. A empresa emprega número igual de homens e mulheres e remunera seus executivos de "alta patente" no máximo cinco vezes mais do que os funcionários da base – a média é que a diferença salarial seja de 95 vezes, nesta indústria.
Em vez de contratar alunos prodígios saídos das chamadas Ivy League, que são as universidades de ponta dos Estados Unidos, a empresa preenche 100% das vagas de estágio com estudantes formados por organizações sociais, como a Coalition for Queens, uma ONG que estimula novos talentos periféricos para a área da tecnologia.
"Se dizemos que queremos construir um mundo mais seguro e igualitário, precisamos então começar pelo nosso quintal. A mudança começa aqui e agora", disse Yancey Strickler, em uma entrevista à revista americana Fast Company.
Com essa mudança, o Kickstarter passou a contar novamente com Chen no cargo de CEO em 2017. Por dois anos consecutivos o "pai" da plataforma esteve no comando do negócio. Mas, em março deste ano, Chen mais uma vez optou por deixar a empresa.
Aziz Hasan, ex-Refinery29 (um portal de notícias e e-commerce feminino), vai comandar a plataforma pouco mais de um ano depois de entrar para o time.
Chen garante que por alguns meses estará ao lado de Hasan, acompanhando a transição, e que vai seguir como conselheiro. Depois, ele quer focar em outros projetos, como a música. Se for gravar alguma canção, talvez ele tenha de buscar auxílio no Kickstarter para financiar seu projeto.
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