Era um Segredo de Polichinelo, daqueles que se conta às gargalhadas nas mesas dos bares, mas, claro, jamais em público. Nem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e nem o núcleo duro do Partido dos Trabalhadores (PT) jamais fizeram esforço para esconder que apoiavam o regime venezuelano sem ressalvas.
Os repetidos abusos aos direitos humanos, o permanente uso da máquina pública nas eleições, as perseguições aos oponentes políticos, nada disso foi suficiente para que Lula e o PT abandonassem o Chavismo nessa última década trágica para a Venezuela.
Ainda assim, Lula surpreendeu no apoio ao presidente venezuelano Nicolás Maduro nesta semana em Brasília. Não foi a recepção com honras de chefe de Estado destinada a Maduro que assustou quem conhece de perto a Venezuela.
O que deixou - alguns - aliados e opositores de Lula estupefatos foi a defesa que o presidente brasileiro fez do discurso oficial venezuelano para a crise que o país enfrenta nesses últimos dez anos.
Lula atribuiu a uma “narrativa” fabricada o caos que se instaurou no país após o fim do ciclo de alta das commodities. Fez mais: atribuiu à política externa dos Estados Unidos as profundas dificuldades econômicas enfrentadas pela Venezuela nessa trágica década passada.
Lula, agora como presidente, deixou claro que, como boa parte da esquerda brasileira, abraça sem ressalvas o discurso esquizofrênico, irreal e, para muitos venezuelanos em diáspora, debochado dos chavistas sobre o estado das coisas na Venezuela, o país que ainda detém as maiores reservas de petróleo do planeta.
A guerra de narrativas na Venezuela
A Venezuela foi o primeiro país da América Latina a embarcar no que hoje se chama tão comumente de guerra de narrativas. O primeiro país a experimentar essa polarização renhida, com discursos, opiniões e histórias marcadas pela mentira, que se tornaram marca cada vez mais comuns de Norte a Sul no continente.
E os principais responsáveis por esse movimento foram exatamente as forças de oposição ao então renovador Hugo Chávez, um ex-militar venezuelano que havia tentado dar um golpe de Estado antes de se eleger presidente.
Em 1999, após um longo período de crise causado por uma queda abrupta nos preços do petróleo, Chávez chegou ao poder pela vontade popular. Seus adversários políticos, integrantes de uma elite econômica e política que controlava o país desde a descoberta do petróleo na década de 1920, jamais aceitaram a derrota. A classe média rentista, que vivia há décadas das benesses do petróleo, apoiou um golpe frustrado contra Chávez em 2002.
Aos longo dos 10 anos seguintes, Chávez se beneficiou de uma alta de quase 1.000% no valor do barril do petróleo. Foi um ciclo inédito de valorização, poucas vezes repetido na história, e que chegou ao fim de forma coincidente com a morte do líder venezuelano. Ao longo daquela década, a Venezuela amealhou quase US$ 1 trilhão vendendo petróleo, algo como cinco vezes seu PIB nominal de 2014.
Chávez, ao contrário de seus antecessores, realizou um amplo programa de distribuição de renda, ampliação dos subsídios e investimento nos serviços básicos de atendimento à população mais pobre.
Ao longo dos anos de fartura, o índice de desenvolvimento humano da Venezuela saltou. De um país com IDH médio, de 0,635 (quase o mesmo da Namíbia), em 2000, a Venezuela transformou-se em um país com IDH elevado, de 0,762, em 2014, três posições acima do Brasil, por exemplo, no mesmo ano.
A vida dos venezuelanos mais pobres, sempre negligenciada pela elite que dominava o país por décadas, melhorou de forma sensível. Mas Chávez, em certa medida, repetiu os erros de seus antecessores e, agora, antagonistas. Ao longo dos últimos 100 anos, a Venezuela vive uma permanente montanha russa de momentos de crises profundas e bonanças empolgantes por conta do petróleo, seu único produto de exportação desde a descoberta de reservas pelos americanos nos anos 1920.
Rapidamente, a Venezuela se tornou um caso clássico de Doença Holandesa. Com a fartura do óleo (na década de 1930 já era o terceiro maior produtor do mundo), a Venezuela nunca se industrializou, nunca se tornou autossuficiente na produção de alimentos, nunca conseguiu escapar do que se convencionou chamar de maldição do petróleo.
Chávez, definitivamente, rompido com o incipiente setor produtivo após a tentativa de golpe de 2002, acelerou a implantação de políticas populistas para garantir apoio das camadas mais pobres e se distanciar de um elite que ele enxergava - e que de fato o era - golpista.
Após 15 anos de fartura de capital, a Venezuela viu o ciclo de alta das commodities se encerrar da mesma forma que o viu iniciar: um país rentista, pouco produtivo e hiper-dependente do petróleo.
A bandeira de Maduro
Quando Maduro assumiu o país em 2013, a Venezuela já tinha seu destino traçado. Com a queda repentina do preço do barril, a PDVSA, a estatal petroleira, se tornou incapaz de financiar um estado profundamente subsidiado, com baixíssima capacidade de arrecadação interna, e praticamente nenhuma outra fonte de moeda forte.
Logo, as reservas venezuelanas entraram em crise. Para completar, o país ainda precisava fazer frente a compromissos de curto prazo de uma dívida externa que já supera os US$ 120 bilhões. A China, dona de quase 50% da dívida externa venezuelana, aceitava receber o pagamento dos juros em petróleo. Wall Street, não.
Maduro, por sua vez, ampliou as políticas populistas após o governo sofrer uma derrota acachapante nas eleições parlamentares de 2015. Passou a imprimir dinheiro de forma descontrolada.
Logo, a Venezuela se viu em uma tempestade perfeita. Não tinha moeda forte para importar os produtos mais básicos, como alimentos, itens de higiene ou medicamentos. Ao mesmo tempo, via a hiperinflação destruir tudo que encontrava pela frente.
Os ganhos da última década e meia desapareceram ainda mais rápido do que chegaram. Em 2016, mais de 65% dos lares venezuelanos estavam abaixo da linha da pobreza.
Eu acompanhei a crise venezuelana de perto. Fui ao país inúmeras vezes e vi de perto uma tragédia que se ampliava mês a mês, semana a semana, dia a dia. Em 2017, era comum encontrar venezuelanos de qualquer classe social que não comiam carne há meses.
Era comum ver alas inteiras de hospitais com pacientes condenados à morte porque não havia remédios muito básicos, como anti-hipertensivos, antibióticos ou os tão comuns antirretrovirais que salvaram a vida de milhares de pacientes soropositivos. Doenças que haviam desaparecido, como o sarampo, o sarcoma de Caposi, a hanseníase voltaram a ser comuns.
Ao mesmo tempo, uma ampla rede de contrabando se formava no país para oferecer aos poucos que tinham acesso ao dólar. Me lembro de ir a uma favela de Caracas para comprar um anti-inflamatório com os chamados bachaqueros. Produtos tão simples quanto um tubo de pasta de dentes só eram encontrados com os contrabandistas.
O governo adotou como estratégia criar um inimigo externo para explicar a população as razões pelas quais tanto sofrimento, tanta morte, tanta fuga estavam assolando esse país incrivelmente rico. Aproveitou as sanções adotadas pelo governo do presidente Barack Obama em 2014 para difundir a ideia de que havia um bloqueio comercial contra a Venezuela.
Naquele momento, as sanções eram, apenas, contra indivíduos, membros do gabinete de Maduro, em represália à maneira violenta com que o governo venezuelano reprimiu os protestos de 2014.
A primeira vez que os EUA e a União Europeia sancionaram empresas que faziam negócios com a Venezuela foi apenas em 2019, na tentativa estabanada da elite da Venezuela e do governo de Donald Trump, de desestabilizar o país reconhecendo Juan Guaidó como presidente legítimo.
Enquanto o governo Maduro gritava ao mundo e à América Latina, em especial, que enfrentava uma crise sem precedentes por conta de um suposto bloqueio comercial dos Estados Unidos, a PDVSA seguia vendendo quase toda sua produção exatamente à sua subsidiária americana, a Citco.
Ao longo dos anos mais duros da crise, entre 2014 e 2019, quase todo fluxo de dólares que chegava ao país vinha exatamente dos Estados Unidos. E boa parte deles voltava para os Estados Unidos para pagamento de juros da dívida com Wall Street. Foi só em 2018 que a Venezuela desistiu de vez de pagar sua dívida externa e entrar em default.
Mas antes disso o país já havia entrado em default comercial ao não honrar as dívidas que tinha com empresas privadas que abasteciam o país com equipamentos fundamentais para manter a exploração de petróleo. Sem reservas, a Venezuela deu calote em empresas estratégicas e viu a PDVSA se tornar incapaz de manter o volume de produção do único bem que exportava.
Integrante da OPEP, o seleto grupo de exportadores de petróleo, a Venezuela viu sua produção despencar a partir de 2014, quando bombeava de suas reservas quase 3 milhões de barris por dia. Em 2020, a PDVSA produzia apenas 10% disso. Hoje a produção subiu, mas ainda não chega sequer a 1 milhão de barris por dia.
A crise se tornou insustentável para muitos venezuelanos. A partir de 2015 o país começou a assistir o que se tornaria a maior crise migratória da história recente da América Latina e uma das maiores do mundo.
A ONU estima que mais de seis milhões de pessoas, algo como 20% da população da Venezuela, tenham deixado o país nessa última década. Venezuelanos estão espalhados por todo o continente e hoje são um problema grave para países como o Chile e a Colômbia.
Apesar da agressiva repressão política, os casos constantes de violência contra os opositores do governo, a maior parte desses refugiados saiu do país porque simplesmente não tinha comida, remédios ou qualquer tipo de assistência.
Lula sabe disso tudo. Conhece de perto as histórias de sofrimento, dor e desespero dos venezuelanos. Lula sabe que os venezuelanos não fogem de uma narrativa. Fogem de uma tragédia.
*Yan Boechat é jornalista há mais de duas décadas. Já publicou em todos os veículos da imprensa brasileira e em diferentes veículos internacionais. Cobriu os principais conflitos armados internacionais na última década. Esteve na Venezuela diversas vezes nos últimos 10 anos.