Desde 2015 à frente da presidência da Artesol, ONG voltada à valorização de artesãos brasileiros e à consequente geração de renda, Sônia Quintella ansiava em poder dar visibilidade ao artesanato nacional, em pé de igualdade com a produção de artistas visuais consagrados do país.
Esse cenário idealizado, enfim, está se concretizando. A ONG criada em 1998 pela antropóloga e ex-primeira dama Ruth Cardoso (1930-2008) reunirá entre os dias 30 de agosto e 3 de setembro, 20 artesãos excepcionais na exposição “Arte dos Mestres”, com mais de 200 obras e itens à venda entre R$ 900 e R$ 32 mil.
A mostra ficará abrigada no espaço State, galpão contíguo à ARCA, na Vila Leopoldina, onde será realizada a segunda SP-Arte Rotas Brasileiras, uma edição consagrada a projetos artísticos fora do eixo Rio-São Paulo.
“A gente nunca conseguiu trazer esses mestres para o centro do mundo das artes. Pela primeira vez podemos apresentá-los ao público junto aos maiores nomes das artes plásticas do Brasil”, salientou, ao NeoFeed, a ex-executiva da Alpargatas e da Gucci no Brasil.
A presidente da ONG pondera que, ao longo dos anos, o artesanato foi trocado paulatinamente por produtos de plástico, relegando à palha, à madeira entalhada, à cerâmica, entre outros, o mero status de matéria-prima para suvenires turísticos.
As obras de “Artes dos Mestres” foram produzidas especialmente para a ocasião. A exposição faz parte das comemorações dos 25 anos da Artesol e tem curadoria de Josiane Masson, idealizadora do projeto e diretora-executiva da Artesol há 13 anos, e Marco Aurélio Pulchério.
Juntos, fizeram a seleção da mostra, que terá ainda a exibição de documentários sobre cada um dos artesão, além de bate-papos com especialistas da área, a exemplo da pesquisadora Adélia Borges.
"É um prazer poder falar sobre o nosso legado que se inicia com meu avô Geraldo Telles de Oliveira, o GTO. Depois ele passou sua técnica para meu pai Mario Telles e eu segui com as ferramentas. Porque meu avô sabia que arte estava dentro de mim", contou ao NeoFeed, o artista Alex Telles, que segue a tradição familiar dos Telles, uma "trindade artística", portanto, entalhando em madeira imagens que contam histórias da cultura brasileira.
Em termos de tipologia, a curadoria tem predominância de trabalhos de cerâmica e madeira, e revela uma forte concentração da atual produção artesanal brasileira na região Nordeste.
A seleção tem, entre outros méritos, a participação de artistas de comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, numa ampla faixa etária. Há desde artesãos octagenários, como o pernambucano Mestre Luiz Antônio (1935), único aprendiz ainda vivo de Mestre Vitalino (1909-1963), a seu conterrâneo, o escultor Everaldo Pereira, nascido em 1987.
Josiane Masson ressalta que a mostra irá contextualizar a produção dos mestres não apenas por meio dos documentários, mas também textos sobre as regiões onde moram, as técnicas e os materiais que utilizam e seus processos criativos, entre outros aspectos.
Já Pulchério pontua que em nenhum país ele vê a diversidade de tipologias encontrada no Brasil, das fibras, dos entalhes às cerâmicas, passando ainda por uma grande variedade de produtos têxteis.
O curador destaca uma exceção, no que tange a tipologia, entre os participantes: o mineiro Willi de Carvalho (1966), considerado um dos maiores miniaturistas do Brasil, que retrata cenas e personagens populares, festejos etc.
Para se ter uma ideia da excelência artística dos participantes, vale citar o paraense Marivaldo Costa (1971), convidado em 2016 para uma exposição no Museu Paraense Emílio Goeldi. Ou a Família Santos, que participou da emblemática exposição “Bahia no Ibirapuera” (1959), sob a curadoria de Lina Bo Bardi, e de outras mostras de peso, nos anos 2000, curadas por Emanoel Araújo (1940-2022), fundador do Museu Afro Brasil, em São Paulo.
A origem da Artesol
Em sua origem, batizada como Artesanato Solidário, a Artesol era um dos vetores do programa Comunidade Solidária, fundado em 1995 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, e do qual faziam parte ainda outros projetos sociais, voltados da alfabetização à capacitação profissional de jovens.
Em 2002, o plano deu lugar ao Programa Fome Zero, ponto de partida, por sua vez, para o Bolsa Escola e, posteriormente, a criação do Bolsa Família, criado dois anos depois, no primeiro mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E a Artesol, então, tornou-se uma ONG, mantendo apoio financeiro do governo federal.
Para Quintella, “enquanto instituição viva”, Ruth Cardoso continuou a ser um dos pilares da Artesol até a sua morte, em 2008. A antropóloga, salienta, tinha a capacidade de amalgamar, em seu entorno, figuras políticas de orientações ideológicas distintas e, ressalte-se, parte da elite financeira do país. A Artesol recebia doações de expoentes da sociedade brasileira, como Milu Villela, herdeira do Banco Itaú, a aportes financeiros de empresas diversas.
Após a morte da antropóloga, a Artesol penou com a perda de patrocínios e projetos. No entanto, por meio de suas conexões com o universo do luxo, Quintella conseguiu, junto à família Jereissati, que o Shopping JK Iguatemi de São Paulo se tornasse patrono e mantenedor da ONG, responsável pelos custos estruturais e trabalhistas, por meio de uma contribuição financeira anual, sem recorrer a leis de incentivo.
O Iguatemi também é parceiro da Artesol na loja de arte popular brasileira Artiz, no JK Iguatemi, cujos lucros são revertidos para o funcionamento e as ações da instituição. Num shopping voltado a uma clientela de alto poder aquisitivo, a loja tem como principal objetivo corrigir a percepção de que o artesanato é um mero suvenir barato, comprado em viagens, relevando sua potência criativa e histórica, além de fomentar a comercialização desses produtos a preços justos.
Pontualmente, outras empresas, como as Casas Pernambucanas, e instituições filantrópicas também subsidiam projetos da Artesol. O Banco do Brasil e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) já estiveram por trás de algumas de suas ações. A exposição “Arte dos Mestres”, por sua vez, tem patrocínio do Instituto Cultural Vale – um apoiador recorrente – por meio da captação de R$ 2,9 milhões via Lei Rouanet.
A ONG também realiza há mais de uma década jantares beneficentes e leilões. O último, ocorrido em novembro de 2022, arrecadou quase R$ 6 milhões.
Essa receita é voltada para as variadas ações da instituição, entre elas a Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro, considerada o maior projeto da ONG, e dedicada ao mapeamento, há cinco anos, de artesãos em todo o Brasil. Estima-se que sejam cerca de 1 milhão de famílias atuando nesses ofícios.