Em um dos mais surpreendentes acontecimentos geopolíticos das últimas décadas — e não foram poucos — o Hamas “invadiu” Israel. A organização palestina que controla a Faixa de Gaza desde 2007 já tinha lançado ataques antes, mas nada que se aproximasse daquilo que ocorreu no dia 7 de outubro de 2023. No início da manhã, o Hamas atacou Israel por terra, mar e ar.

Pelo menos 22 comunidades israelenses de diferentes dimensões foram invadidas; algumas permaneciam ocupadas ao cair da noite. Comandos em botes infláveis atacaram comunidades costeiras. Combatentes em paragliders motorizados participaram dos ataques. Segundo fontes da imprensa israelense, até a noite do dia inicial das hostilidades mais de 3.000 foguetes haviam sido lançados contra Israel, causando destruição e mortes até mesmo em Tel-Aviv.

Segundo as forças armadas israelenses, centenas de cidadãos do país foram mortos, milhares foram feridos e um número impreciso de homens, mulheres e crianças — militares e civis — capturados e levados para a Faixa de Gaza. Veículos militares israelenses, inclusive tanques, foram destruídos ou capturados.

Vídeos exibidos pela mídia internacional mostram cenas terríveis com mulheres e crianças sendo sequestradas pelos combatentes e cadáveres sendo vilipendiados. Segundo algumas fontes, foi o pior dia da história de Israel em relação a número de civis mortos e feridos em combate. As dimensões da operação ultrapassam aquelas de qualquer ato terrorista anterior; Netanyahu está correto ao usar a palavra "guerra".

O evento lembra o 11 de setembro, por sua dimensão e pela enorme surpresa que causou. Assim como o ataque às Torres Gêmeas em 2001, o choque e o fato de não ter sido previsto, ou sequer imaginado, faz com que qualquer tentativa de explicar o ocorrido neste momento seja precipitada. O ataque do Hamas possui ainda o agravante de não ter se encerrado, especialmente pela existência de reféns. É possível, porém, organizar as perguntas extremamente complexas que já levanta.

A primeira pergunta, e que tem sido feita por muitos israelenses, é “como isso pode ter ocorrido?” Israel possui dois serviços de inteligência, o Shin Bet (inteligência interna) e o Mossad (inteligência externa) que são tidos como dos mais competentes do mundo. Não foram capazes, porém, de identificar os planos do Hamas, a despeito do fato de que, dadas as suas dimensões, planos e preparativos devam ter se estendido por meses e incluído milhares de pessoas.

Parte da resposta que surge entre israelenses aponta para dois fatores. O primeiro seria a concentração de recursos de inteligência nas organizações apoiadas diretamente pelo Irã, como o Hezbollah, o Jihad Islâmico e grupos na Síria, negligenciando o já conhecido Hamas, que era considerado menos capaz.

O segundo fator seria a divisão interna da sociedade israelense, especialmente em torno da reforma judicial desejada por Benjamin Netanyahu e apoiada por religiosos radicais e colonos que ocupam áreas palestinas não reconhecidas como israelenses pela comunidade internacional e, em alguns casos, nem mesmo pela Suprema Corte. Essa reforma é contestada pela população liberal do país. A animosidade chegou ao ponto de alguns reservistas das forças armadas israelenses terem se recusado a participar de treinamentos periódicos, em protesto.

A segunda pergunta é “por que agora?” O Hamas parece ter sido motivado por um contexto específico: o caos político de Israel e a perspectiva de um processo de paz no Oriente Médio, algo que tiraria muito de seu protagonismo e apoio.

Esse processo de paz, ainda potencial, decorre tanto dos acordos entre Israel, EAU e Arábia Saudita como da entrada do Irã no BRICS, onde este certamente seria pressionado a não criar problemas para China, Rússia, Brasil e Índia, esta última muito próxima de Israel. Seja como for, o Hamas conseguiu ferir profundamente o processo de paz, provocando declarações dos governos da Arábia Saudita, Qatar e Irã; e culpando Israel pelo ocorrido.

A terceira pergunta é sobre o que fará Israel. Internamente, Netanyahu deve tentar capitalizar a guerra em seu benefício e explicar o revés da inteligência como consequência da suposta fraqueza de seus opositores. Os reféns, porém, serão um fator de extrema tensão na sociedade israelense e dificultarão uma solução militar.

O governo de Netanyahu não pode correr o risco de ganhar a guerra e perder a paz, por conta da morte de israelenses sob poder do Hamas, que parece apostar no aumento da divisão política israelense à medida que o choque inicial seja superado e o drama dos reféns se torne o assunto central de Israel. Externamente, é duvidoso que Israel se lance em alguma guerra maior, salvo no caso da entrada do Hezbollah no conflito. Também é pouco provável que os Estados Unidos ataquem o Irã. Essa situação, porém, é instável e haverá muita tensão até que um novo equilíbrio seja atingido.

Finalmente, o que esperar como brasileiros? As dimensões da crise ainda não estão definidas. Estruturalmente, a tensão entre Ocidente e novas potências deve se agravar, por conta do choque de interesses no Oriente Médio. O Brasil, como de hábito, deve assumir o papel de moderador das tensões entre esses polos, sem se envolver em conflitos e interagindo comercial e diplomaticamente com todos os envolvidos, condenando, porém, a ação do Hamas como terrorista.

Os mercados globais estarão sujeitos a um vetor de cautela até que a situação se torne mais clara e pode haver, obviamente, pressão sobre algumas commodities, particularmente petróleo e gás. Isso tudo prejudicaria ainda mais as perspectivas de crescimento global. Esse evento é mais um alerta que nos aconselha a não sermos excessivamente otimistas nesta época de business as unusual.

Uma gestão realista de riscos geopolíticos para cada negócio, mais do que nunca, pode ser a grande diferença na tomada de decisões: nenhum negócio está completamente blindado das possíveis consequências dos choques de um mundo em transição geopolítica. E outros choques, infelizmente, virão.

*Antonio Gelis Filho, doutor pela FGV-SP, é professor de Geopolítica nos cursos de graduação e pós-graduação na FGV-EAESP.