Em 1998, antes de começar a ser entrevistado pela BBC de Londres, o então agraciado com o Nobel de economia e filósofo indiano Amartya Sen – hoje com 89 anos, o primeiro e até o momento, único acadêmico de um dos países não desenvolvidos a ganhar a honraria – foi surpreendido com uma pergunta para compor o perfil seu que seria lido na abertura do programa.

O repórter quis saber qual lugar ele considerava “sua casa”, pois tinha trabalhado como professor em importantes universidades dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Índia. A resposta deixou o jornalista confuso e insatisfeito. Em síntese, Sen se sentia bem em qualquer lugar.

“Mas acrescentei que também me sentia muito à vontade em nossa velha casa perto da Harvard Square na outra Cambridge, e que me sinto muito à vontade na Índia, sobretudo em nossa casinha em Santiniketan, onde fui criado e para onde adoro voltar regularmente.”

O entrevistador insistiu: “O senhor não tem conceito de lar?” Ao contrário, respondeu Amartya Sem. “Tenho mais de um lar que me acolhe, mas não concordo com a sua ideia de que o lar tem que ser exclusivo”.

O diálogo aqui resumido explica o título de sua aguardada e elogiada autobiografia "Uma casa no mundo – Memórias", uma espécie de primeira parte que está sendo lançada no Brasil pela Companhia das Letras, uma vez que percorre o período até ele completar 30 anos e, portanto, bem antes de sua consagração com o Nobel.

Só com sua leitura, porém, é possível compreender como ele, com seu olhar humanista de notável pensador econômico e filosófico, propõe que todas as nações trabalhem para amenizar a miséria e estabeleça um lugar mais sustentável. Como se o planeta fosse uma só casa para todos.

“O nome da nossa casa na velha Daca, ‘Jagat Kutir’, quer dizer ‘a cabana do mundo’. Isso refletia em parte a descrença do meu avô no nacionalismo, embora minha família viesse a produzir um bom número de nacionalistas na luta contra o Raj britânico.”

Exemplos assim fazem com que cada página anotada por Amartya Sen relacione sua vivência a uma lição e a um aprendizado dele e que o leitor pode e deve conhecer – principalmente quem trabalha com macroeconomia ou relações internacionais.

Observar atentamente para absorver os detalhes do cotidiano e as discussões em sala de aula foi o que guiou seus passos antes de ele virar professor. A própria família tinha mestres nesse sentido, pois o pai era um respeitado professor de universidade e o avô juiz.

Amartya Sen foi reitor e professor na Universidade de Cambridge, professor em Oxford, é catedrático de Harvard e um dos fundadores do Instituto Mundial de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento.

Ele se tornou um dos pensadores de ponta na análise do desenvolvimento dos países, quando criou, em 1990, em parceria com o paquistanês Mahbub ul Haq, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que passou a ser adotado mundialmente até hoje como forma de medir o desenvolvimento dos países, em que se considera tanto fatores econômicos quanto sociais.

Nascido em Santiniketan, hoje Bangladesh, em 1933, após a Partição de Bengala (divisão territorial de caráter religioso), em 1947, Sen emigrou com a família para a Índia, onde estudou antes de se doutorar em economia pelo Trinity College, em Cambridge.

Em 1998, com 65 anos de idade, ganhou o prêmio Nobel por seu trabalho sobre a economia do bem-estar social. Antes disso, já era considerado um dos maiores intelectuais do século XX.

Em 450 páginas, Sen trata apenas dos primeiros 30 anos de sua vida, intercalados com observações sagazes sobre história e política, assim como análises sobre teoria econômica e filosofia – principalmente na última parte da obra. Grandes poetas de sua juventude, notadamente indianos e do Oriente Médio são citados o tempo todo, em meio à sua escrita, fluente e emocionante.

Seu propósito é ensinar às novas gerações que, sem uma visão social, nenhuma área do conhecimento humano tem um sentido completo

Seu propósito é ensinar às novas gerações que, sem uma visão social, nenhuma área do conhecimento humano tem um sentido completo. Ou seja, não é possível que nenhuma nação se desenvolva economicamente sem sustentabilidade e isso representa também promover ações sociais que acabam por gerar retornos de diversas formas.

Para fundamentar essa mensagem, ele se debruça sobre o pensamento de grandes nomes da economia que fizeram parte da base de suas ideias, como Ashoka (século III a.C.), Akbar (século XVI), David Hume, Adam Smith, Karl Marx, John Maynard Keynes, Maurice Dobb, Kenneth Arrow e do historiador Eric Hobsbawm.

Parte do texto é dedicada a reflexões sobre as seculares relações entre Índia e Reino Unido, tão complexas, conflituosas e marcadas por traumas difíceis de serem superados, mesmo a cada nova geração. Em uma das passagens interessantes está a que ele aprofunda sobre a importância dos rios para a economia e a sociedade circundantes, uma discussão frequente em seus grupos de estudo.

O poeta e pensador Rabindranath Tagore via a conexão com clareza e falava dela em ensaios, assim como em poemas. “O que eu não sabia àquela altura era o significado atribuído aos rios pelos economistas pioneiros, que celebravam o papel construtivo do comércio”, escreve.

Por todo o livro se destaca o aprendizado em família. O cotidiano ganha ênfase na sua relação com o meio de transporte que estabeleceu para sua locomoção. “A bicicleta — uma Atlas simples — foi presente dos meus pais e, como a ganhei ainda em fase de crescimento, é um pouco mais baixa do que as bicicletas adultas normais. Mas utilizei-a por mais de cinquenta anos — de 1945 a 1998, quando o Museu Nobel assumiu sua custódia”.

A bicicleta não só lhe dava uma mobilidade mais rápida dentro de Santiniketan, como permitia ir às aldeias próximas quando começou a tocar com um grupo de colegas uma escola noturna para crianças tribais que não tinham acesso à educação primária (descrito no capítulo 3). Alguns colegas, alunos e professores da escola não tinham bicicleta e por isso era muito raro ele pedalar sem um passageiro na garupa, e às vezes outro no quadro, entre o guidão e o selim.

Nada alterou sua relação com esse frágil meio de locomoção. Nem mesmo a reputação internacional. “O primeiro — e por algum tempo único — investimento que fiz em Cambridge foi comprar uma bicicleta. Andar até Trinity e até o centro da universidade a partir da Priory Road levava muito tempo”.

Além disso, “eu precisava ir a diferentes partes da cidade — visitar colegas, assistir a palestras, consultar bibliotecas, encontrar meus amigos e assistir a reuniões políticas, sociais e culturais. Infelizmente meu orçamento não me permitiu comprar uma bicicleta de marcha”.

Foi de bicicleta que ele serviu como presidente da Associação Econômica Americana em 1996 (sendo o primeiro presidente não-americano), da Associação Econômica Indiana e da Associação Econômica Internacional. Antes, tornou-se Presidente Honorário da OXFAM (Oxford Committee for Famine Relief).

Durante o ano de 1943, quando tinha apenas 10 anos de idade, ele viu de perto a escassez de alimentos em Bengali levar quase 3 milhões de pessoas à morte. Adulto, passou a se dedicar a reformas sociais que pudessem trazer melhorias em países subdesenvolvidos por meio de políticas socioeconómicas que fossem adaptáveis para amenizar a escassez de alimentos.

Avançou no raciocínio construtivo e em formas de melhorar a condição dos pobres, enquanto trabalhava para o bem-estar de comunidades. Seu trabalho sobre a justiça social baseada em liberdades e capacidades individuais lhe rendeu o Nobel em 1998.

O seu trabalho lançou nova luz sobre problemas sociais graves na Índia e do mundo – pobreza extrema, fome, subdesenvolvimento humano, desigualdade de gênero e liberalismo político. Na prática, trouxe uma série de resultados bem-sucedidos nas políticas que ajudou a criar. Ao mesmo tempo, Amartya Sen enfatiza a importância da empatia e de se ampliar a visão a respeito do que nos cerca. A tudo isso dedica cada minuto de sua longeva vida.

SERVIÇO:
Uma casa no mundo – Memórias
Amartya Sen
472 páginas
Impresso: R$ 104,90
E-book: R$ 49,90
Companhia das Letras