Valcléia Lima tem clara sua primeira lembrança da vida. Aos dois anos, sentada no chão de terra batida, ela observa o funcionamento de sua comunidade natal: mulheres e homens, adolescentes e crianças, cada um cumprindo suas tarefas, como uma orquestra bem afinada.
No interior do Pará, aquele lugar, que ela conhecia como casa, era, na realidade, o quilombo Murumuru, criado por seus avós, escravizados fugitivos. Aquela garotinha, que se maravilhou com o trabalho coletivo de seu povo, hoje, aos 57 anos, acaba de ser escolhida “CEO” da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).
Em dois anos e meio, ela assume a superintendência geral da entidade no lugar de Virgílio Viana, um dos idealizadores da organização. Fundada em 2008, a FAS é reconhecida internacionalmente por instituições como a Unesco pelo seu trabalho na conservação ambiental da Amazônia.
A fórmula de sucesso da instituição está em preservar a floresta em pé, enquanto fortalece a qualidade de vida das comunidades locais. Essa estratégia usa o conhecimento dos povos tradicionais para o desenvolvimento da bioeconomia da região.
Desde então, a ONG ajudou mais de 918 comunidades, aldeias e bairros — quase 26 mil famílias beneficiadas, o equivalente a 96,1 mil pessoas atendidas. Esse números trouxeram prêmios como o BrazilFoundation de Impacto 2023, além de ser declarada melhor ONG do mundo em 2019, 2021 e 2022, entre outras tantas honrarias.
Com formação em gestão de políticas públicas e especialização em ciências agrárias , Valcléia está na FAS há 17 anos. “Eu comecei lá embaixo, para ser mobilizadora", diz ela, ao NeoFeed. No início, dada sua familiaridade com a população da área, a ela cabia conectar a fundação com as comunidades.
Aos poucos, Valcléia foi conquistando seu espaço. Hoje, é superintendente geral adjunta da FAS. Em outras palavras, a responsável pela implementação dos projetos da organização. Ou seja, tudo passa por ela.
E, como tal, ela representa a FAS em eventos mundo afora, como o Climate Week, em Nova York. Como porta-voz da entidade, já foi convidada a participar de um curso na Universidade Harvard e frequentemente é chamada para palestras.
“A trajetória da Valcléia é profundamente inspiradora e um exemplo de resiliência e impacto. Ela combina empatia, leveza e firmeza, trazendo uma perspectiva única, ampliando vozes que historicamente foram silenciadas e trazendo soluções coletivas para desafios sociais e ambientais”, diz ao NeoFeed Andrea Kestenbaum, cofundadora e CEO da Positive Ventures.
O jeito de trabalhar de Valcléia tem muito de seu pai, Mario dos Prazeres Lima. “Ele era líder da comunidade e falava sempre para os filhos [11, no total]: se quiséssemos ocupar um lugar melhor no mundo ou mesmo retribuir para o nosso povo, precisávamos ir em busca do conhecimento”, conta ela.
Mas seu caminho até aqui não foi fácil. Aos 10 anos, Mario entregou a filha aos cuidados de uma família de Santarém, com a garantia de que a menina estudaria — a escola em Murumuru só ia até até a terceira série. Ao contrário do que havia sido prometido ao pai, a menina foi feita babá e faxineira.
Foram três anos até que Mario descobrisse o que acontecia. Ele então confiou os estudos da criança a um amigo historiador. "Lá, passei a ser tratada como uma integrante da família”, diz Valcléia. “Eu então estudei no melhor colégio público da região e tudo parecia estar dando certo…”
Quando ela completou 14 anos, sua mãe abandonou a família e Valcléia voltou para Murumuru para cuidar dos irmãos menos. Um ano depois, a adolescente engravidou. Mesmo assim, decidiu voltar a estudar. “Eu nunca perdi um dia de aula por causa do meu filho”, orgulha-se. “Ele virou o xodó da minha classe.”
Em seguida veio a doença e a morte do pai. Apesar do sofrimento, Valcléia nunca esmoreceu. Lamenta Mario não ter estado presente em sua formatura. Até conseguir seu primeiro trabalho no terceiro setor, no Projeto Saúde e Alegria, Valcléia foi faxineira, lavadeira e babá.
Depois de nove anos, a convite da Fundação Muraki, ela saiu de Santarém para Manaus. Lá, conheceu a FAS e o resto é história.
“Eu tenho orgulho de ser negra e quero morrer para nascer novamente negra", diz ela. "Porém, não quero ser vista pela minha cor, mas sim pelo que tenho a agregar nos espaços que frequento, com todo o conhecimento que adquiri ao longo dos anos."