Ver a exposição Utopias Modernistas Brasileiras, em cartaz até 18 de março na discreta Casa Zalszupin, em São Paulo, pode parecer um programa pocket. Afinal, trata-se da ocupação minimalista de um sobrado paulistano com fotografias, livros-objeto, poemas e móveis de design datados do período moderno (anos 1940 a 1970).
Nada de megaespaços expositivos ou compilações exaustivas, muito menos de extensos textos explicativos ou incontáveis opções de materiais para consulta. Nada de superlotação (as visitas devem ser agendadas pelo site casazalszupin.com) ou interferências sonoras excessivas.
O lugar é introspectivo e silencioso, perfeito para deixar-se ocupar por obras de nomes eloquentes como os fotógrafos Thomaz Farkas e Jean Manzon, o artista Geraldo de Barros, os poetas Ferreira Gullar e Augusto e Haroldo de Campos, além dos arquitetos Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Lina Bo Bardi.
A densidade do conteúdo, portanto, é alta. “Eu sabia que a aproximação entre a fotografia moderna e a poesia concreta, meu ponto de partida, poderia ficar muito chata”, diz o fotógrafo e gestor cultural Iatã Cannabrava, curador da exibição, ao NeoFeed. “Se não propuséssemos ligações profundas entre as obras, ou a foto se tornaria ilustração do poema ou o poema funcionaria como legenda da foto.”
Por fugir das ligações óbvias, nem sempre a interpretação das aproximações sugeridas por Cannabrava vem fácil. Com exceção, talvez, da parede logo à frente de quem entra na sala de estar.
Ali, fotografias de plantas e folhagens de José Yalenti, Carlos Ligér e Thomaz Farkas parecem complementar o grande quadro ao lado, formado pela janela piso-teto que emoldura uma imponente árvore do jardim, repleta de cipós pendentes que lembram esculturas.
Ver navios
De resto, é preciso se deter um pouco mais e ouvir as explicações de Elisa Arruda, profissional que acompanha a visita. E logo se percebe que a montagem está em simbiose com a residência, como costuma acontecer nos eventos realizados ali. “Não tem como falar de fotografia moderna sem falar de arquitetura”, ressalta Cannabrava.
Ainda na sala de estar, a lareira de alvenaria tem suas três faces adesivadas com poemas concretos. O co-curador, Tato Coutinho, chama a atenção para um deles: “Ver Navios, de Haroldo de Campos, é uma espécie de contrato social da mostra.” Vem navio/vai navio/vir navio/ver navio/ver não ver/vir não vir/vir não ver/ver não vir/ver navios.
Tudo bem, portanto, se nos sentirmos meio à deriva. “O modernismo é um jogo de encaixes”, afirma Coutinho. Por isso, cada ambiente adota um discurso próprio e coloca uma espécie de charada, que cabe ao espectador decifrar a seu modo, com seu repertório (ou pedir uma ajuda à gentil Elisa).
Em outra parede do estar, fotografias de indígenas, registradas por José Yalenti e Jean Manzon, estão à frente da mesa lateral Ninho, de Lina Bo Bardi. “Você reparou que os pés são triângulos, que também aparecem no arco-e-flecha tensionado?”, questiona Cannabrava.
Os spoilers param por aqui. Mas vale destacar que até o futebol virou assunto. Em um dos quartos, pode-se ouvir trechos do documentário radiofônico sobre a campanha campeã da seleção brasileira na Copa de 1958.
“No jogo de estreia, o gol marcado pelo lateral Nilton Santos foi um rompante do time de assumir um risco, pois nunca um jogador defensivo havia avançado tanto no campo do adversário. Como os fotógrafos, poetas e arquitetos modernos, os jogadores daquela época também subverteram uma linguagem estabelecida”, compara Coutinho.
Mas, afinal, qual a relevância de voltarmos a esse período da história brasileira? “Revisitá-lo é revisitar a intenção dessas pessoas, fotógrafos, poetas e designers, que tentavam propor um novo caminho para o Brasil”, fala Cannabrava. “E não é o que estamos tentando fazer até hoje?”, provoca.
A casa-museu como investimento
Dá para dizer que a implantação da Casa Zalszupin, em 2021, também foi um golaço. A residência, projetada em 1960, leva a assinatura do consagrado arquiteto e designer polonês naturalizado brasileiro Jorge Zalszupin (1922-2020), que a habitou até o fim de sua vida.
Diante do risco de descaracterização ou mesmo demolição após uma possível venda (o imóvel tem valor histórico, mas não é tombado), duas empresas entraram em campo para negociar com a família a implantação de uma casa-museu no local: a Etel, marca que se especializou na reedição de móveis modernos (inclusive os de Zalszupin) e a galeria de arte Almeida & Dale. Ambas mantêm e fazem a gestão da iniciativa cultural estabelecida ali: a operação da casa e também do legado de seu antigo proprietário.
Lissa Carmona, CEO da Etel e idealizadora do projeto, não revela o valor total investido. “Até porque minha decisão teve um quê de irracional, pois havia uma urgência, uma questão de timing. Não deu tempo de montar um plano detalhado”, conta ela ao NeoFeed. Formada em administração de empresas pela FGV e egressa do mercado financeiro, ela é a responsável pela internacionalização da Etel, presente em Milão – a meca do design – há seis anos.
“Não vejo a Casa Zalszupin como negócio. Não podemos nos resumir a números, sob a pena de esquecer a dimensão maior. Quanto perderíamos se o lugar fosse vendido, reformado, fechado ao público?”, questiona.
De fato, em um ano e meio, a existência desse espaço movimentou o setor de design. Utopias Modernistas Brasileiras é sua oitava exposição na Casa, publicada internacionalmente e tema do livro Entretempos (Act Art Consulting), com um ensaio fotográfico de Ruy Teixeira e o conteúdo das exibições que já ocuparam seus ambientes.
A publicação revela destaques dessa joia da arquitetura, como os painéis de madeira na fachada, as grandes aberturas para o jardim, as paredes irregulares pintadas de branco, a parede de pedras da sala, o teto curvo e a disposição dos ambientes em meios-níveis.
“Todo mundo ganha quando se investe em cultura a longo prazo”, defende a empresária. “E é importante a iniciativa privada se dar conta dessa possibilidade com casas históricas. Criamos aqui o modelo para isso”, finaliza.