Pouca gente sabe, mas o Brasil foi um dos principais fornecedores do algodão que abasteceu a Revolução Industrial na Inglaterra; e o único entre os grandes exportadores a rapidamente perder espaço nesse mercado, amarrado a tributos criados pela Corte portuguesa mergulhada em gastos incontroláveis.

Essa história, contada em tese de doutorado pelo professor de economia da FGV Thales Zamberlan Pereira, chamou a atenção do historiador e jornalista Rafael Cariello, e deu a partida para um dos mais interessantes livros lançados neste aniversário de 200 anos da proclamação da Independência no Brasil.

“Adeus, senhor Portugal - Crise do absolutismo e a Independência do Brasil”, editado pela Companhia das Letras, traz números inéditos na bibliografia sobre o fim do Reino Unido de Portugal e Algarves, para provar que foi o mal-estar econômico provocado pelos gastos excessivos da Coroa portuguesa que levou o país a separar-se de Portugal.

A mesma irresponsabilidade fiscal daria fim no absolutismo português. Dom Pedro I, aliás, em vez de patrono criador do Brasil independente a partir de um gesto heroico, era parte do problema.

O livro mostra com ênfase inédita a participação popular, de brasileiros pretos e pardos, no processo. Também conta eventos do Brasil recém-independente, quando D Pedro I, que inaugurou sua gestão com medidas de austeridade, acaba cedendo ao descontrole fiscal para financiar guerras por território, e alimenta, com isso, forte oposição das elites

Seu primeiro-ministro da Fazenda, Martim Francisco de Andrada, logo é demitido, inaugurando também a tradição de rejeição brasileira a equipes econômicas obcecadas com o equilíbrio fiscal.

Seu primeiro-ministro da Fazenda, Martim Francisco de Andrada, logo é demitido, inaugurando também a tradição de rejeição brasileira a equipes econômicas obcecadas com o equilíbrio fiscal

Com nova luz sobre documentos conhecidos e descobertas reveladoras da pesquisa feita em grande parte durante a pandemia, Thales Zemberlan Pereira e Rafael Cariello veem nesse episódio da História uma demonstração de que regimes autoritários costumam gerar problemas que só se resolvem com regimes de liberdade política. A seguir, os principais trechos da conversa deles com o NeoFeed:

Ao começar as pesquisas para o livro, vocês já tinham essa convicção de que a questão fiscal estava por trás do movimento da Independência?
Rafael Cariello: Adoro História Econômica, li a tese do Thales quando saiu, em 2017, em que falava do impacto fiscal da transferência da Corte de D. João VI para o Rio de Janeiro. Passou-se a cobrar muito mais imposto do que chamavam o Norte, da Bahia para cima, que era rico, com a venda de tabaco e do açúcar e algodão. Eu tinha feito um perfil do (historiador e diplomata) Evaldo Cabral de Mello, para a (revista) Piauí, e, lendo o livro dele sobre a Independência, achei que não havia ainda algo que consolidasse tudo sobre o assunto.

Vocês já haviam trabalhado juntos?
RC - Eu não conhecia o Thales, liguei para ele, sugeri fazermos algo a partir da questão fiscal. Começa com a insatisfação dessa elite do Norte, mas há algo que descobrimos no processo de pesquisa, a insatisfação generalizada, as contas não fechavam; mesmo aumentando pra burro os impostos, os gastos aumentavam ainda mais. Nos anos finais, mais de 30% da receita do Estado luso-brasileiro vinha de empréstimos do Banco do Brasil. E há uma bruta inflação; não é só a elite, está todo mundo bravo.

"Nos anos finais, mais de 30% da receita do Estado luso-brasileiro vinha de empréstimos do Banco do Brasil. E há uma bruta inflação; não é só a elite, está todo mundo bravo"

Isso está documentado?
RC - No livro sobre D. João VI, do Oliveira Lima, quando ele explica a Revolução de 1817, em Pernambuco, há uma carta do cônsul francês em Pernambuco, que diz: “olha, os caras começaram uma revolução aqui porque recebiam um dinheiro para comprar farinha e não está dando mais”. Fomos ver: o preço da farinha duplicou em quatro anos. O da carne seca triplicou. O descontentamento era generalizado na América Portuguesa.
Thales Zamberlan Pereira – O livro do Evaldo, focado na revolução de Pernambuco, sinaliza que há essa questão dos impostos; mas a diferença é que botamos número nas coisas. Falavam das reclamações, dos empréstimos do Banco do Brasil.... Era muito dinheiro, quanto? Muitos autores falam que o problema era o gasto da Coroa, reclamavam da “ucharia”, a despensa real onde iam pegar alimentos, e o rei usava para atrair aliados. Mostramos que existiam gastos da casa real muito mais relevantes, especialmente o Exército.

Retrato de Martim Francisco Ribeiro de Andrada, Acervo do Museu Paulista da USP

E, com isso...
TZP - Com os números, conseguimos ver onde começa o problema, o que explica também por que é 1822. Esses problemas começam desde D. João, mas a instabilidade monetária começa a ganhar momento ali, em 1818, 19. O déficit já estava vindo, mas começa a explodir perto de 1820. Por isso dá para entender a Revolução do Porto e o que se passa no Brasil.

Vocês falam que a crise surge com o esgotamento de outras fontes de receita...
RC – Quando se esgotam alternativas, a solução no Brasil é tomar dinheiro sem pagar de volta, ou seja, aumentar a base monetária e ter inflação; as pessoas ficam insatisfeitas porque a renda delas perde poder de compra. Em Portugal, é ainda mais dramático: simplesmente param de pagar o funcionalismo civil e o militar. Conselheiros de D. João falam: “sua Majestade, seria bom que a gente voltasse pagar os militares, vai dar revolução, se não...

"Quando se esgotam alternativas, a solução no Brasil é tomar dinheiro sem pagar de volta, ou seja, aumentar a base monetária e ter inflação"

Vocês lembram que os marxistas foram os primeiros a dar ênfase à questão econômica, mas criticam os autores dessa corrente, como Caio Prado Júnior. Há algo dessas obras que permaneça válido?
RC – Caio Prado é bem bom; não explica suficientemente a Independência, mas tem muita verdade, como a de que, a princípio, a colônia foi largada à sua própria sorte, o poder político coincidia com poder econômico durante muito tempo, sobretudo em Pernambuco: os grandes plantadores e donos de engenho eram quem detinha poder nas câmaras municipais, sobretudo em Olinda. Com o aumento da importância econômica da colônia, passa a haver maior importância para os comerciantes e tentativas de tirar o controle dos latifundiários.

Vocês refutam o Caio Prado mostrando que com a vinda da família real, o conflito arrefece, comerciantes também se tornam donos de terra e produtores de açúcar...
RC – Sim. Já o Fernando Novais tem um mega-esquema, envolvendo a Inglaterra, Revolução Industrial, muito lógico, mas não explica os problemas do dia a dia, da crise política que dá na queda do absolutismo no Reino Unido de Portugal e Algarves e no processo de separação. Por que o absolutismo acabou em 1820 e a independência veio em 1822? Não faz sentido, porque, inclusive, o sistema colonial que ele critica acaba em 1808, com a abertura dos portos.

Não fosse a gastança fiscal da Corte, poderia ter sido evitada a independência, apesar dos fatores políticos e sociais que vocês também descrevem, como a influência das ideias liberais?
RC – Poderia haver uma solução canadense, o Brasil com enorme importância num Reino Unido com Portugal... A Independência, no nosso caso, foi uma crise fiscal, que se tornou crise política, todo mundo fulo de um e outro lado do Atlântico com a cobrança de imposto e seu mau uso. Havia já o exemplo em outros cantos do mundo, e aí importam as ideias: com um parlamento, uma constituição, controla-se o excesso de gastos do soberano, como na Inglaterra, nos EUA, na França. Aí, reuniram-se em Portugal, para escrever uma Constituição, limitar o rei, criar um orçamento, mas o cobertor continua curto. E começa a disputa sobre de onde vai se tirar o imposto, com quem vai ficar o cofre, quem decide o destino do dinheiro no cofre.

"A Independência, no nosso caso, foi uma crise fiscal, que se tornou crise política, todo mundo fulo de um e outro lado do Atlântico com a cobrança de imposto e seu mau uso"

E os brasileiros se dividem aí...
RC – Exatamente, são três grupos, para simplificar: os portugueses, o pessoal do Sul liderado pelo Rio, e o Norte, liderado por Bahia e Pernambuco, querendo mais federalismo. Aí cai o rei, está aberta a negociação, o mundo antigo acabou e não há ainda o novo.
TP – A primeira proposta desses grupos não foi Independência, foi monarquia constitucional. Se houvesse dinheiro para todo mundo, por que mudariam esse plano?

Como a questão econômica fez com que as camadas populares, não só as elites, fossem ativas no processo de independência?
RC – No fundo, todo mundo é afetado pelo encarecimento do custo de vida, e fica insatisfeito. Conseguimos medir essa insatisfação; um trabalho sobretudo do Thales: você pega o aumento de preço de itens básicos da população, qual seria o custo de uma cesta de sobrevivência. Durante o período de Dom João essa renda cai quase à metade. Achamos evidência qualitativa, sensacional. As camadas médias, por exemplo, professores na Bahia, mandam carta ao palácio falando: “não dá mais, a gente não consegue pagar aluguér (sic) e comida”. E o rei autoriza o reajuste dos salários deles. Os capelães na capital também mandam carta.
TP – O interessante é que conseguimos dados que mostram: há um aumentozinho no salário do capelão, e, logo em seguida, a inflação cobre esse aumento.

"O que a gente quer é não tratar da Independência como formação da sociedade brasileira"

Vocês já pretendiam falar do papel da escravidão e da população negra, ou a pesquisa chamou atenção para esse aspecto?
RC – A Independência está muito associada à ideia de nascimento do Brasil, que é essa sociedade horrível por suas desigualdades, violência... E temos esse herói do liberalismo, o Cipriano Barata, que é preso, e mesmo assim mantém um escravizado com ele. O que a gente quer é não tratar da Independência como formação da sociedade brasileira; tem de ser celebrada a ligação da independência com uma forma política, institucional, do governo representativo, muito melhor que o absolutismo. No fundo, a independência mostra que, no Brasil, em geral, os regimes autoritários criam problemas que os regimes representativos precisam resolver. Foi assim na democracia e na Nova República.
TP – Tratar essa história de uma forma cínica, Dom Pedro com cólicas, isso é irrelevante para o processo. Ele não era uma figura central no processo de independência, era parte do problema. Dom Pedro ainda era representante do passado.

ADEUS, SENHOR PORTUGAL - Crise do absolutismo e a Independência do Brasil
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira
416 páginas
Edição impressa: R$ 99,90
Ebook: R$ 45,90
Companhia das Letras