No ano da celebração dos 200 anos da Independência do Brasil, Laís Bodansky desconstrói a imagem de herói de Dom Pedro I. Nada do conquistador que se espelhava em Napoleão Bonaparte ou do político viril que colecionava belas mulheres, as facetas mais reverenciadas nos livros de história.

“A Viagem de Pedro”, filme que encerra hoje (8/5) a 19ª edição do festival de cinema IndieLisboa, em Portugal, é quase uma provocação. A figura que encabeçou a independência do Brasil ganha um olhar contemporâneo, influenciado por movimentos como Black Lives Matter e Me Too.

Aqui o que se vê é um homem doente e perturbado por seu histórico de opressão contra negros e agressão contra mulheres. É o que faz a obra dialogar com os tempos atuais, em que a sociedade pede que a história seja reescrita, inclusive com a derrubada de certas estátuas.

Um exemplo recente foi o ataque à estátua do bandeirante Manuel de Borba Gato (1649-1718), em São Paulo. O monumento foi incendiado em julho do ano passado por homenagear uma figura ligada à escravidão de negros e ao extermínio de indígenas.

“Chega da narrativa sempre do ponto de vista do vencedor, carregada de pompa e com muito verniz”, diz a cineasta paulista de 52 anos. Laís passou por Lisboa para a projeção do filme, que será exibido nesta noite, às 21h30, no Culturgest, fora de competição.

Mais conhecida por “Bicho de 7 Cabeças” (2000) e “Como Nossos Pais” (2017), a cineasta buscou uma visão “menos chapada” de Dom Pedro I. “Trouxe nuances, mostrando as dúvidas, as angústias e os medos do primeiro imperador do Brasil”, afirma ela.

Com lançamento previsto nas telas nacionais em agosto, antes das comemorações de 7 de setembro, “A Viagem de Pedro” é um exercício de especulação. Dá uma ideia de como o homem de passado glorioso poderia estar se sentindo ao deixar o Brasil.

A “viagem” escolhida por Laís é uma travessia atlântica. O percurso realizado em 1831, depois que o administrador abdicou do trono no Brasil e partiu para Portugal (onde é conhecido como Pedro IV), para enfrentar o irmão, Dom Miguel I.

A diretora Laís Bodansky: “Só mudei o ponto de vista para dar luz e um novo significado à jornada de um homem que era um exemplo de monarca"

“Tudo o que Dom Pedro I conseguiu foi às custas de muita opressão. Não há vencedores sem oprimidos”, diz Laís, lembrando que a ambição do governante era inquestionável.

“Se o Brasil é do tamanho que é hoje, isso se deve ao desejo de Dom Pedro I, que tinha uma fixação por Napoleão. Ele também queria ter um império, tão grande quanto o do francês”, destaca a cineasta.

“Foi graças à força militar que ele tinha que o Brasil não se diluiu. Dom Pedro I se considerava muito mais um militar do que um monarca. Era um homem de muita inteligência”, completa ela.

Como esses traços de sua personalidade já foram bastante explorados pelos historiadores, além da sua virilidade, Laís se interessou mais pelas novas abordagens. Além de documentos históricos, ela buscou inspiração em livros mais recentes, que apresentam facetas menos conhecidas de Dom Pedro I.

Isso explica o personagem, interpretado por Cauã Reymond, estar aqui debilitado física e emocionalmente, em busca de um novo propósito para a sua existência. Durante a viagem, ele tem ataques epiléticos, é atormentado por lembranças violentas e ainda sofre de impotência.

O governante tinha abdicado do trono por pressão da elite brasileira, que estava insatisfeita com a sua liderança. E estava a caminho de Portugal, onde lutaria contra o irmão, que tentava usurpar o trono português – a princípio, herdado pela filha de Dom Pedro I, Maria II.

Logo que “A Viagem de Pedro” começa, o que se vê é a estátua levantada em homenagem ao político em Lisboa, quando o filme já questiona se ele foi realmente um herói. “O Brasil da época de Dom Pedro I era o das relações de opressões, tanto de gênero quanto de raça”, afirma Laís.

Laís destaca que rodou a produção no final de 2018, antes do incêndio da estátua de Borba Gato e da retirada de outros monumentos ligados ao racismo nos EUA, como a do general Robert E. Lee (1807-1870).

Sua remoção foi feita em setembro do ano passado, por pressão que cresceu desde assassinato de George Floyd. O negro foi morto em Minneapolis, em 2020, sufocado por um policial branco que se ajoelhou sobre seu pescoço.

“Já havia um anúncio no ar de que isso aconteceria, graças à tomada de consciência da sociedade”, conta Laís, lembrando que movimentos como Black Lives Matter e Me Too pedem uma revisão da história.

O casamento turbulento de Dom Pedro I com Maria Leopoldina é revisitado no filme, por flashbacks. A esposa não era apenas humilhada publicamente pelos casos extraconjugais do marido (o mais famoso deles com Domitila de Castro, que se tornaria a Marquesa de Santos). Leopoldina ainda era submetida à violência física e psicológica. Há relatos de que ele a espancava, até mesmo quando estava grávida.

“Dom Pedro I foi um homem que oprimiu o gênero feminino. E foram muitas mulheres, algo que nunca foi questionado na época. Tudo era conhecido e aceito”, diz Laís, acrescentando que ela não precisou mudar os fatos no filme.

“Só mudei o ponto de vista para dar luz e um novo significado à jornada de um homem que era um exemplo de monarca, um modelo a ser seguido pela sociedade”, afirma ela. “Não daria para revisitar essa história hoje, sem emprestar o meu olhar crítico e contemporâneo de mulher.”