O ano era 1979. Na época, o empresário Nevaldo Rocha entendeu que ficar restrito à indústria têxtil limitaria o futuro do grupo Guararapes, fundado por ele, em Natal (RN), em 1947. Foi quando decidiu comprar as redes Riachuelo e Wolens, expandindo a até então tímida presença da companhia no varejo.
Duas décadas depois, a visão de Nevaldo foi essencial para ampliar as fronteiras da operação do grupo no varejo. O empresário identificou uma chance de expandir a rede no vácuo deixado pelas quebras do Mappin e da Mesbla, na década de 1990.
Até então, a varejista era mais forte na região Nordeste. Com o movimento, a Riachuelo tornou-se uma das principais redes de varejo de moda do País, com 323 lojas e mais de 40 mil funcionários. E Nevaldo, por sua vez, consolidou sua trajetória como uma das referências do setor.
“Ele transformou um negócio que era uma indústria em uma grande operação de varejo, com capilaridade nacional e o apoio de uma indústria integrada, com uma escala enorme”, diz Alberto Serrentino, sócio da consultoria Varese, em uma referência às três fábricas da companhia em Natal, Mossoró (RN) e Fortaleza.
Sob o comando do empresário, o grupo Guararapes desbravou outros caminhos. “A empresa foi uma das primeiras a abrir capital”, diz ao NeoFeed, João Appolinário, fundador e CEO da Polishop, que, aos 17 anos, conheceu Nevaldo.
“Ele era uma pessoa de pouca conversa, mas amava o chão de fábrica. Tinha uma indústria verticalizada e se preocupava com o fio até o produto final”, ressalta Appolinário. “O que é a Zara hoje, de controlar toda a cadeia até o varejo, ele fez lá atrás.”
Essa faceta se traduzia num hábito que foi reforçado nos últimos anos, mesmo com o empresário afastado do dia a dia da operação. Periodicamente, Nevaldo visitava as fábricas do grupo em Natal. “Ele andava pelas linhas de produção, almoçava no refeitório. E dizia que empreender era uma constância e que nunca podia parar”, diz Appolinário.
Essa relação entre a produção e os produtos nas gôndolas também traz um exemplo de como Nevaldo tinha a capacidade de comandar viradas estratégicas no negócio quando preciso. Foi o que aconteceu na década de 1990, quando a empresa passou por uma séria crise e decidiu colocar o varejo definitivamente em primeiro plano.
“Até então, a Riachuelo ficava a reboque das fábricas, o que criava dificuldades, pois ela tinha que absorver o estoque da indústria”, diz Serrentino. “Ele inverteu a estratégia, e quem passou a definir o que seria produzido foi a Riachuelo.”
“Ele andava pelas linhas de produção, almoçava no refeitório. E dizia que empreender era uma constância e que nunca podia parar”, João Appolinário, fundador e CEO da Polishop
O talento e a ambição para diversificar os negócios foram outros componentes nesse roteiro. Em 2008, o grupo criou a Midway, operação financeira que, ao contrário de boa parte dos grandes nomes do varejo, permanece 100% sob o guarda-chuva da holding. E que aguarda a aprovação para atuar como banco digital.
O Guararapes abriga ainda a transportadora Casa Verde e os teatros Riachuelo, na capital potiguar e no Rio de Janeiro. Nesse pacote, outro projeto foi 100% criado por Nevaldo: o Shopping Midway, inaugurado em Natal (RN), fazendo com que o grupo seja o único grande varejista que também administra um centro de compras.
"Ele sempre foi muito inovador", diz Luiza Trajano, presidente do conselho de administração do Magazine Luiza, ao NeoFeed. "Há quase uma década, quando estive no shopping deles, o Nevaldo fez questão de me acompanhar e mostrou que, mesmo não sendo arquiteto, participou dos detalhes da construção. O shopping não tem cantos, facilitando a circulação."
Do sertão ao bilhão
Com essa trajetória, Nevaldo construiu um patrimônio pessoal estimado em US$ 1,7 bilhão, à frente de uma operação hoje avaliada em R$ 8,2 bilhões e que reportou uma receita líquida de R$ 7,8 bilhões em 2019.
Essa história teve início quando ele tinha 12 anos e, com a cara e a coragem, decidiu deixar Caraúbas. Em busca de melhores condições para a família, viajou 300 quilômetros em um pau-de-arara, rumo a Natal.
Alguns dias depois de desembarcar na capital potiguar, Nevaldo conseguiu um emprego como ambulante em uma pequena relojoaria. E enxergou uma oportunidade de turbinar suas vendas ao oferecer os produtos aos militares americanos que perambulavam pela cidade que, na época, abrigava uma base de aviação dos Estados Unidos.
O sucesso da empreitada foi tanto que, em 1947, ele investiu em seu primeiro negócio, a loja de roupas A Capital, embrião do grupo Guararapes. Em 1951, foi a vez de uma pequena confecção em Recife (PE), que deu início a uma expansão pelo Nordeste, em uma época na qual a região ainda engatinhava no mercado têxtil.
Avaliado em R$ 8,2 bilhões, o grupo Guararapes reportou uma receita de R$ 7,8 bilhões em 2019
Nos últimos anos, Nevaldo estava afastado do dia a dia do negócio. Na noite da quarta-feira, 17 de junho, o empresário faleceu em sua casa, aos 91 anos. Viúvo, ele deixou três filhos.
Além de Flávio, que comandava os negócios ao lado do pai desde meados da década de 1980 e é o presidente do Conselho de Administração do grupo, seus irmãos Lisiane e Élvio ocupam as outras duas cadeiras no colegiado.
Com sua trajetória inspiradora, Nevaldo deixa um forte legado no grupo, que também já tem, entre suas fileiras, representantes da terceira geração da família. E foram seus netos e bisnetos os destinatários de um vídeo publicado por Flávio Rocha, hoje no Instagram.
“Descanse em paz. Suas lições e exemplos estarão sempre nos guiando”, postou Flávio, juntamente com um vídeo contendo uma mensagem de Nevaldo aos herdeiros. Confira, na íntegra:
"Meu pai era muito sábio, era um pão para dois. A gente brigava muito na hora de partir esse pão no meio. Aí papai resolveu da seguinte maneira. Tem um pão, um parte e outro escolhe. Quem parte não escolhe. E assim era. Dois pães para quatro meninos famintos. Papai resolveu assim. O pão era pequeno e o apetite dos meninos grande, mas a regrinha resolvia a questão, evitava conflitos. Isso tem muito a ver com a criação do nosso protocolo familiar, que hoje, com muita alegria lhes apresento. Nada mais é do que uma lista de regras simples de convivência, com o objetivo de manter a família unida e perpetuar a empresa. Sim, porque não existe maneira mais fácil de abalar uma empresa do que um conflito familiar. Por sermos uma família empresária, temos grande responsabilidade de gerar empregos e tocar a vida de muitas famílias. Por trás de um emprego, existe uma pessoa e por trás de uma pessoa, existem sonhos e expectativas. Como acolher tantas pessoas, sonhos e expectativas embaixo de uma mesma liderança? Acredito que a resposta seja: unidos a um propósito e liderando por exemplo. Temos o dever de dar bons exemplos sempre em casa e no trabalho. A família crescerá a cada geração. Nem todos terão interesse ou vocação para trabalhar na empresa. Cabe a nós respeitarmos as escolha de cada indivíduo e promover seu desenvolvimento de bem-estar na busca de sua realização pessoal e profissional. Essa é a missão de nossa família. Sabemos que não é fácil empreender no Brasi,mas carrego comigo cinco palavras que acredito terem nos trazido até aqui. São elas: honestidade, simplicidade, foco, transparência e meritocracia. Esses são os valores da nossa família. Tenho muito orgulho de termos chegado até aqui de maneira ética e guiados por fortes valores. Acredito que a honestidade gera bons negócios e dá credibilidade no trabalho e na vida pessoal. Que esses valores estejam sempre presentes em nossas vidas. Sejam felizes. Esse é o nosso maior desejo. Eu tenho muito prazer em dizer que eu vim aqui para Natal procurar um emprego e ter conseguido construir hoje 40 mil empregos. A chave do sucesso é ser honesto. Sendo honesto, todo mundo quer negócio com você. Se você não é honesto, o povo foge de você. E como pra fazer negócio você precisa pelo menos de duas pessoas, você tem que ter a imagem de uma pessoa honesta. Seja honesto."
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