Quando o primeiro 737 MAX 8 decolou, em 2017, a Boeing elegeu o avião como a sua grande aposta. No início de 2019, a fabricante americana projetava que a aeronave representaria cerca de 90% das entregas no ano.
Dois acidentes com o modelo em um espaço de cinco meses mudaram, no entanto, o curso dessas projeções. O primeiro deles em novembro de 2018, na Indonésia. E o segundo na Etiópia, em março deste ano. O saldo trágico foi de 346 mortes. E sob a suspeita de falhas no projeto, os voos com o 737 MAX 8 foram suspensos em mais de 50 países.
Desde então, 382 aviões estão fora de operação. Somados os que foram produzidos nesse intervalo, 688 aeronaves permanecem paradas em pátios da Boeing e de companhias aéreas em todo o mundo. E o roteiro para que o modelo volte a cruzar os ares ganha, a cada dia, novas escalas.
Envolvida em uma série de testes para reforçar a segurança do modelo e obter uma nova aprovação da Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA) e de outras agências no mundo, a Boeing mantém a previsão de um retorno ainda nesse ano.
Porém, diante da falta de avanços concretos, as companhias aéreas vêm adiando as projeções para que isso aconteça. Dona da maior frota de 737 MAX 8, são 34 ao todo, a americana Southwest Airlines revisou o prazo de 5 de janeiro para 8 de fevereiro de 2020.
Com uma previsão inicial de volta da operação em 19 de dezembro, a United Airlines trabalha agora com a data de 8 de fevereiro. Já a American Airlines não vê possibilidade de um retorno antes de 15 de janeiro, enquanto a Air Canada prorrogou o prazo para 14 de fevereiro.
Uma das dificuldades da Boeing é informar os avanços na segurança do 737 MAX 8 sem alarmar os passageiros
Mesmo com uma eventual retomada, nada indica que o processo não terá turbulências. Uma das dificuldades à frente é o desafio de informar os avanços na segurança do 737 MAX 8 sem alarmar os passageiros.
“Os passageiros irão perguntar qual é o avião dos seus voos e se for o MAX8, vão cancelar”, afirma Neil Hansford, presidente da consultoria Strategic Aviation Solutions.
Um estudo recente da consultoria Atmosphere Research reforça esse dilema. Segundo a pesquisa, 72% dos passageiros que viajaram ao menos uma vez no último ano sabem da suspensão dos voos com o 737 MAX 8.
Desse universo, apenas 14% afirmaram que voariam no modelo nos primeiros seis meses de seu retorno. E somente 20% no primeiro ano. O índice daqueles que escolheriam voos menos convenientes ou mais caros para evitar o 737 MAX 8 foi de 40%.
Impactos
À espera de uma solução há mais de sete meses, as companhias aéreas vem convivendo com a necessidade constante de remanejar seus voos e encontrar alternativas para substituir o modelo. E contabilizam as perdas nesse período.
Na quinta-feira 24, ao divulgar o balanço do terceiro trimestre, a Southwest informou que esse contexto trouxe um impacto de US$ 435 milhões em seu lucro operacional dos primeiros nove meses do ano.
Já a American Airlines, que também divulgou o resultado do período na mesma data, anunciou que os aviões em solo irão afetar seu lucro operacional em US$ 540 milhões em 2019, ante uma estimativa inicial de US$ 400 milhões.
Em setembro, a brasileira Gol já havia reportado a previsão de gastar 1% a mais de combustível no terceiro trimestre e 2% no quarto trimestre em virtude da parada. A empresa tem sete aviões dessa linha fora de serviço.
Procurada pelo NeoFeed, a Gol reiterou, em nota, a confiança na segurança de suas operações e na Boeing. E afirmou que “está acompanhando de forma intensiva todos os fatos, que permitam o retorno das. aeronaves às operações regulares da companhia”.
“Essa é uma crise sem precedentes na história da aviação comercial”, diz Gianfranco Beting, especialista em aviação
“Essa é uma crise sem precedentes na história da aviação comercial”, diz Gianfranco Beting, especialista em aviação. Ele destaca o fato de a Boeing viver o dilema de assumir que falhou no projeto em questão. “É como um elefante numa loja de cristais. Não há um movimento correto. Tudo o que for dito poderá se voltar contra a empresa.”
Desafios à parte, a condução do caso por parte da Boeing é alvo de críticas. “A empresa foi extremamente arrogante e omitiu informações”, afirma Hansford, da Strategic Aviation Solutions.
Há quem faça, no entanto, um contraponto a essa visão. “Por mais que as aéreas reclamem da falta de uma solução, a Boeing não controla todas as variáveis”, diz Francisco Lyra, sócio da consultoria C-Fly Aviation. “É natural que as agências reguladoras sejam mais cautelosas para aprovar uma nova certificação.”
Na última semana, o caso ganhou contornos ainda mais críticos. Na sexta-feira 18 de outubro, a agência Reuters divulgou uma troca de mensagens entre dois pilotos da Boeing, feita em 2016. Na conversa, um dos funcionários manifesta sua preocupação em relação à segurança do 737 MAX 8, na época, ainda em fase de testes para certificação.
Ao mesmo tempo, o Wall Street Journal publicou uma pesquisa interna realizada há três anos pela Boeing. O documento mostra que um a cada três funcionários se sentia pressionado em relação à aprovação dos requisitos de segurança dos aviões comerciais da fabricante. E entrou na mira do Comitê de Transportes e Infraestrutura, que investiga o caso.
Outros dois episódios recentes reforçam os desafios da Boeing. Em setembro, a irlandesa Ryanair anunciou a suspensão dos pagamentos referentes aos 135 novos 737 MAX que havia encomendado junto à companhia.
Já no início de outubro, o sindicato dos pilotos da Southwest entrou com um processo contra a Boeing, exigindo mais de US$ 100 milhões pelos prejuízos estimados até o fim do ano
Em queda
Na quarta-feira 10, a Boeing divulgou seu resultado referente ao terceiro trimestre. E o balanço traduz as consequências de todo esse contexto. No período, o lucro líquido da empresa recuou 51%, para US$ 1,17 bilhão.
O lucro líquido da Boeing recuou 51%, para US$ 1,17 bilhão no terceiro trimestre de 2019
A receita líquida ficou em US$ 19,9 bilhões, 21% inferior na comparação com igual período de 2018. A queda na receita de aviação comercial foi ainda mais acentuada, de 41%.
Os impactos também podem ser medidos por outro indicador. A empresa saiu de um valor de mercado de US$ 238,7 bilhões, antes do segundo acidente, em março, para US$ 193,8 bilhões.
Esse cenário está no centro de algumas mudanças promovidas pela Boeing. Nesta semana, a companhia anunciou a troca do presidente de sua divisão de aviação comercial. Antes, em setembro, já havia destituído o CEO Dennis Muilenburg do cargo de presidente do Conselho de Administração.
Ao mesmo tempo, a empresa tem destacado os esforços empreendidos para resolver a questão do 737 MAX 8. Entre eles, a atualização do software suspeito de estar por trás das falhas, com a adição de três camadas de proteção. E também a realização de mais de 800 voos de teste e mais de 1,5 mil horas com o sistema atualizado.
Esse trabalho, no entanto, parece não convencer a todos. “Fundamentalmente, o avião é mal projetado e coloca uma nuvem em todos os produtos recém-projetados pela empresa”, diz Hansford.
Ele aponta a intenção da American Airlines em encomendar aeronaves A320, da Airbus, como o estopim dos erros cometidos pela Boeing no projeto do MAX 8. “A Boeing não tinha um produto comparável. E para impedir essa negociação, apressou o desenvolvimento do MAX 8. O resto é história.”
Para Lyra, da C-Fly, é evidente que a empresa cometeu erros. “Mas a FAA e outras agências também têm responsabilidade, pois certificaram o projeto”, afirma o especialista.
Beting, por sua vez, ressalta dois reflexos, em especial, para a Boeing. “Do ponto de vista de imagem, essa crise é um olho roxo. Vai passar”, observa. “Mas sob os resultados das aéreas clientes e da própria empresa, é um ferimento que tem a magnitude de uma amputação.”
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