Anunciado como o próximo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o economista Aloizio Mercadante tem um desafio enorme pela frente: fazer o BNDES voltar a ser protagonista da política nacional de investimentos, sem onerar o caixa do Tesouro, como no passado. Para analistas, o petista precisará andar no fio da navalha.
“A preocupação do mercado financeiro faz sentido”, afirmou ao NeoFeed um ex-diretor do banco de fomento, ao analisar a queda da bolsa de valores após a confirmação de Mercadante no comando. “Durante vários anos, o BNDES fez empréstimos com pouco critério, efetividade e resultados catastróficos”, acrescentou o executivo, que preferiu não se identificar.
Ainda está na lembrança dos investidores o fato de o BNDES, sob os governos do PT, ter emprestado dinheiro a juros subsidiados pelo Tesouro aos “campeões nacionais”, empresas de setores específicos com potencial de expansão global.
Um exemplo emblemático foi o da operadora de telefonia Oi, cujo objetivo era se tornar uma supertele para competir globalmente. No fim, a empresa foi protagonista de uma das maiores recuperações judiciais da história brasileira, com dívidas de R$ 65 bilhões, em 2016.
Só seis anos depois, a companhia saiu da recuperação judicial. Mas precisou vender quase todas as operações, como de telefonia celular e de fibra óptica, concentrando-se na oferta de serviços de banda larga. O sonho de se tornar uma supertele ficou pelo caminho, assim como o dinheiro do BNDES.
Em 2015, o saldo de recursos do Tesouro aportados no BNDES chegou a R$ 487 bilhões. Nos anos seguintes, durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, o estoque caiu para perto dos R$ 100 bilhões.
Um estudo realizado pelo Citi mostrou que de 2010 a 2015, o BNDES atingiu uma participação de 21% em crédito no Brasil. Hoje, está na casa de 9%. O banco tem hoje cerca de R$ 65 bilhões em crédito anual, contra R$ 280 bilhões no ápice em 2013.
Já o Índice de Basileia, que busca medir a solvência de determinada instituição financeira, que chegou a ser de 9,5% no fim do governo Dilma, estava em 36% em setembro deste ano. O valor mínimo exigido pelo Banco Central do Brasil é 11%.
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Nos nove primeiros meses de 2022, o BNDES acumulou um lucro líquido de R$ 34,2 bilhões. O resultado ficou 29,5% acima do verificado no mesmo período do ano passado.
Durante todo o ano de 2021, o lucro do banco de fomento foi de R$ 34,1 bilhões. Em 2015 (último ano completo de Dilma Rousseff na Presidência), o lucro havia sido de R$ 6,2 bilhões.
Sem espaço fiscal
Em Brasília, a visão é de que a situação em 2023 é diferente. Com a crise fiscal, o governo tem pouco ou nenhum espaço no caixa para impulsionar o BNDES. Em conversas reservadas, o próprio Mercadante já sinalizou ao setor bancário que não há dinheiro para o retorno da política de subsídios.
Em um almoço com empresários do grupo Esfera, em São Paulo, Mercadante reforçou que não haverá uma volta do BNDES ao passado. "Não vamos trazer o BNDES do passado, vamos construir o BNDES do futuro, buscando novas fontes de financiamento. Temos muitos recursos lá fora", disse Mercadante a empresários que estavam presentes no encontro.
Entre eles, estavam Rubens Ometto, da Cosan; André Esteves, do banco BTG Pactual; Eugênio Mattar, da locadora Localiza; e Fabio Ermírio de Moraes, da Votorantim Cimentos.
Economista de viés heterodoxo, Mercadante afirmou a empresários que a TLP continuará a ser a referência dos contratos do BNDES. Ao mesmo tempo, indicou que poderia discutir a possibilidade de a taxa ser menor em projetos de longo prazo e em contratos com empresas menores. Na prática, não descartou a possibilidade de mudança na taxa.
No almoço, Mercadante aproveitou para anunciar sete dos nove diretores que estarão com ele no BNDES. Os executivos podem ser separados em dois grupos: os mais alinhados com as ideias de mercado e os de viés desenvolvimentista, que enxergam a necessidade de o BNDES trabalhar com juros abaixo dos de mercado.
No primeiro grupo estão o ex-presidente do Banco do Brasil e do Banco Original Alexandre Abreu; o ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) José Luis Gordon; a presidente do Standard Bank Brasil, Natalia Dias; a presidente no Brasil do banco francês Natixis, Luciana Costa; e o ex-conselheiro da Petrobras e ex-ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Luiz Navarro de Britto.
No segundo grupo estão os ex-ministros Nelson Barbosa (Fazenda) e Tereza Campello (Desenvolvimento Social). Ambos fizeram parte do governo de Dilma Rousseff. O NeoFeed apurou que os nomes do primeiro grupo foram bem recebidos pelo mercado, mas há desconfiança em relação a Barbosa e Tereza Campello.
“A questão essencial é: qual a visão dos diretores que virão sobre a TLP e, se não for uníssona, quem terá força para influenciar a discussão?”, afirmou ao NeoFeed o executivo de um grande banco, que preferiu não se identificar. “A presença do Nelson Barbosa, ex-ministro e opositor da MP 777 [que virou a lei que substituiu a TJLP pela TLP], me deixa preocupado.”
De fato, Barbosa foi um opositor convicto da TLP. Anos após a adoção da taxa, ele ainda usava o Twitter para criticar o fim dos juros subsidiados. Além da resistência do mercado, existe hoje um limitador importante aos subsídios: o fato de a taxa de juros das operações de crédito do BNDES não ser mais determinada pelo próprio governo.
Desde 2018, os juros dos financiamentos concedidos pelo BNDES têm como referência a Taxa de Longo Prazo (TLP), calculada com base em títulos públicos NTN-B de 5 anos. Na prática, a TLP reflete as condições do mercado financeiro no momento do empréstimo.
Antes da TLP, a referência dos contratos do banco de fomento era a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) – formado por Ministério da Fazenda, Ministério do Planejamento e Banco Central.
Como era determinada pelo governo – e não pelas condições do mercado – a TJLP muitas vezes era fixada abaixo do valor cobrado por instituições financeiras privadas. Por esta dinâmica, o BNDES dos governos do PT concedia financiamentos com juros subsidiados, a empresas específicas.
“A mudança do cálculo da TJLP para a TLP em 2018 é muito importante, porque muitas empresas faziam arbitragem. Elas pegavam dinheiro com o BNDES pela TJLP, para tocar projetos, mas aplicavam no mercado financeiro parte dos recursos”, pontua Ricardo Rocha, professor de finanças do Insper.
Com a TLP próxima das taxas de mercado, o crédito de longo prazo no Brasil começou, gradativamente, a migrar para o setor privado. Dados do Banco Central mostram que no fim de 2015, ano em que o estoque de recursos do Tesouro no BNDES chegou a R$ 487 bilhões, o banco de fomento era responsável por 37,1% do saldo de crédito para empresas no país.
Em outubro de 2022, já com a TLP, o porcentual estava em 18,3%. No período, a importância do BNDES diminuiu, mas o crédito para as empresas aumentou 22,9% em valores nominais.
Em outras palavras, o crédito para pessoas jurídicas cresceu, puxado pelo mercado privado, e não pelo BNDES. E vale lembrar que entram nesta conta apenas as operações de crédito convencionais, e não a captação realizada pelas empresas no mercado de capitais.
“É importante criar esta cultura de financiamento de longo prazo. Assim o Tesouro fica menos pressionado ao fazer a gestão da dívida pública”, afirma Rocha, do Insper. “O BNDES pode e deve entrar em algumas operações, juntamente com o mercado privado, mas a atuação do mercado é que deveria dar o direcionamento.”
Entre alguns integrantes da equipe de transição, no entanto, ainda há a visão de que o BNDES deve ser protagonista na concessão de crédito no Brasil. Um economista que participou de um dos grupos temáticos, em Brasília, defendeu ao NeoFeed o retorno da TJLP.
Segundo ele, juros mais baixos que a média do mercado são fundamentais para impulsionar a reindustrialização do país – uma promessa de campanha de Lula.
Mesmo se o governo quiser resgatar a TJLP, como teme o mercado financeiro, o retorno da taxa passa pela aprovação de uma lei.
A dúvida é se o Congresso, formado em grande parte por parlamentares da direita, será receptivo à proposta. Ou se o lobby setorial, em especial da indústria, garantirá apoio parlamentar inclusive entre a oposição. Para analistas, a simples tentativa de mudar o indexador pode azedar ainda mais o clima na bolsa brasileira.
Por trás do movimento está justamente o medo do mercado financeiro de que, com Mercadante, o BNDES volte a ser um sumidouro de recursos públicos.
Reindustrialização
Seja qual for a política a ser adotada, Lula já deixou claro o que espera de Mercadante no comando do BNDES.
“Nós estamos precisando de alguém que pense em desenvolvimento, de alguém que pense em reindustrializar este país, de alguém que pense em inovação tecnológica, de alguém que pense na geração de financiamento ao pequeno, ao grande, ao médio empresário, para que este país volte a gerar emprego”, afirmou Lula, durante evento da transição em 13 de dezembro.
Ato contínuo, o Ibovespa – o principal índice de ações da bolsa brasileira – passou a registrar fortes perdas. No fim daquele dia, acumulou queda de 1,71%. Foi a segunda sessão consecutiva de baixa, em meio aos temores relacionados ao novo presidente do banco estatal.
Nas últimas semanas, Mercadante aguardava a definição sobre quem comandará o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), pasta à qual o BNDES estará ligado.
O comando do ministério, aliás, virou uma dor de cabeça para o novo governo. A primeira opção de Lula era o atual presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes. Filho de José Alencar, vice-presidente de Lula nos primeiros mandatos do petista, Gomes recusou o convite.
Outro empresário convidado por Lula, o presidente do Conselho de Administração do Grupo Ultra, Pedro Wongtschowski, também teria decidido não aceitar o comando do MDIC.
Em Brasília, uma das leituras é de que, ao indicar Mercadante para o BNDES, antes mesmo de definir o titular do MDIC, Lula teria dificultado a negociação com empresários. Quem aceitar o ministério já terá que aceitar a indicação do petista para o banco.