Aluga-se o sonho americano: sem documentação para trabalhar em vagas formais, imigrantes ilegais pagam para locar contas de aplicativos em um mercado paralelo, que pega carona na fragilidade do sistema da chamada "gig economy".

Nos Estados Unidos, a prática começou há cerca de quatro anos, segundo o assistente jurídico Robert, que pede para não ser identificado. Brasileiro radicado em Las Vegas, ele conta que nos últimos anos testemunhou dezenas de pessoas participando desse esquema, seja oferecendo ou comprando o "serviço".

"O que acontece é que tanto os aplicativos de transporte, como Uber e Lyft, como os de delivery, tipo Doordash, Instacart e Grubhub, têm processos de segurança que são facilmente contornados e os usuários encontraram ali formas de monetizar, ignorando os perigos dessa manobra", falou ao NeoFeed.

As negociações acontecem por meio de redes sociais ou do bom e velho "boca-a-boca". Os anúncios publicados em grupos de Facebook aos quais o NeoFeed teve acesso sinalizam que, em média, imigrantes sem documentos pagam entre US$ 80 e US$ 120 por semana para usar a conta em um dos aplicativos.

"Antes da crise do coronavírus, os apps de transporte eram mais disputados, por conta da rotatividade e dos valores praticados, mas desde que a economia foi paralisada e os restaurantes fechados, todo mundo migrou para as plataformas de delivery", diz Robert.

Independentemente do segmento em que atuam, todos os aplicativos têm processos semelhantes para cadastramento de seus parceiros, exigindo entre outros documentos carteira de motorista, endereço residencial e o social security – título equivalente ao CPF brasileiro.

E mesmo adotando outros mecanismos de segurança, como exigir reconhecimento facial dos usuários, as companhias não conseguiram ainda coibir a prática. 

Prova disso é que o brasileiro Esdras, de 60 anos, aluga não apenas uma, mas duas contas: uma do Doordash e outra do Instacart. "Cobro apenas US$ 50 por semana porque quero ajudar quem está começando. Não quero explorar ninguém", contou ao NeoFeed.

Morando na Califórnia há mais de 30 anos, Esdras explica que toma certos cuidados para evitar ser banido das plataformas. "O segredo é alugar as contas para alguém que tenha as mesmas características que você. Não posso, por exemplo, alugar minha conta para um jovem de 20 anos, para uma mulher ou para alguém com traços asiáticos, porque chamaria a atenção dos usuários a ponto de fazer denúncia via app." 

Segundo o brasileiro, o homem que atua em sua conta da Doordash trabalha em torno de 8 horas por dia e consegue embolsar US$ 1,2 mil/semana. Para fins comparativos, um trabalhador remunerado com base no salário mínimo praticado na Califórnia receberia menos de US$ 500/semana. 

Mas mesmo com todos os "protocolos de segurança" adotados pelo brasileiro, algumas histórias não têm final feliz. Isso porque, além do risco de ser expulso e bloqueado dos aplicativos, quem aceita entrar para esse mercado ilegal tem ainda que se preocupar com as trapaças entre os interessados.

O "inquilino" de Esdras em sua conta do Instacart, por exemplo, mudou todos os dados de contato e pagamento assim que assumiu o login e a senha do app, sequestrando o perfil do brasileiro.

"Já acionei o Instacart para sinalizar que minha conta foi roubada. Como resposta, eles disseram que iriam investigar o caso, mas já faz três meses e eu continuo sem nenhuma novidade."

O rapaz com quem fez negócio é um "amigo de um amigo" e Esdras revela arrependimento dessa transação, mas não das outras. A experiência ruim, aliás, não foi exatamente um aprendizado – o brasileiro está se cadastrando em outros aplicativos para poder alugar seu perfil e já o oferece em grupos no Facebook. 

Esdras não respondeu, contudo, se cobra de seus inquilinos o imposto de renda gerado pelos ganhos das corridas. O valor varia de acordo com a receita e o estado de cada um, mas um motorista que ganha cerca de US$ 60 mil/ano, na Califórnia, tem de desembolsar US$ 11,5 mil em tributações.

Esse acordo Anthony S. estipulou com seu locatário antes de começar os trabalhos, mas não foi suficiente para evitar dor de cabeças. Morando nos EUA com o visto de estudante, que não lhe permite trabalhar, Anthony encontrou nesse mercado paralelo uma maneira rápida e fácil de se gerar renda.

Ele pagou adiantado pela primeira semana de trabalho e um recolhimento mínimo de imposto, deixando cerca de US$ 270 com o "parceiro" dono da conta no Lyft.

"O problema é que o proprietário original da conta sempre terá acesso a ela e, ao fim de uma semana de trabalho duro, vi que o homem de quem aluguei o perfil mudou os dados bancários no cadastro e pediu a transferência dos valores. Não vi um centavo dos mais de US$ 1 mil que teria de receber, e ainda tive o prejuízo daquele pagamento adiantado", relatou ao NeoFeed.

Algumas das mensagens relacionadas ao comércio ilegal de contas em apps, publicadas em grupos do Facebook

Anthony não pode se queixar com o aplicativo e nem com a polícia, uma vez que trata-se de uma prática ilegal. O advogado Bennjamin Kassis explica que alugar ou vender um perfil nesses aplicativos não é um crime, mas, caso seja instaurado um processo, os envolvidos podem ter de responder por falsidade ideológica e evasão fiscal – esses, sim, crimes mais pesados. 

"Não tenho conhecimento de algum caso que tenha tomado essa dimensão. Na maioria das vezes acredito que os usuários sejam apenas bloqueados e talvez banidos de determinados apps, mas quase nunca isso resulta em um processo de deportação ou coisa parecida", diz Kassis.

O advogado comenta ainda que, em geral, essas contas ilegais têm prazo de vida muito curto, porque as empresas cada vez mais sofisticam seus mecanismos de segurança.

"Pelo que percebo esses imigrantes ilegais não representam uma ameaça à sociedade, porque não são pessoas violentas ou criminosas. São apenas trabalhadores buscando oportunidades", afirma Kassis.

A psicóloga Joyce Cristofani, que estuda o movimento migratório, corrobora com a percepção do advogado. "As pessoas mudam de país na esperança de uma vida melhor, por mais óbvio que isso soe. Em geral, são indivíduos que buscam uma mobilidade social que lhes é negada em seu território de origem. A reprodução de histórias de outros imigrantes, que 'arriscaram' e conseguiram ter rápido acesso a certos confortos, os empolga", disse ao NeoFeed.

Procuradas para esclarecer quantas contas foram banidas de seus sistemas devido a essa prática ilegal de aluguel de conta, as maiores empresas do setor não retornaram, e tampouco esclareceram sobre novos dispositivos de segurança.

Por e-mail, a Uber declarou que "não foi possível verificar se as situações mencionadas aconteceram com o aplicativo da Uber pois a reportagem não forneceu à empresa qualquer informação sobre os veículos ou os motoristas parceiros que permitissem identificar os casos".

O NeoFeed ratifica que, dada a natureza do artigo, que pode implicar em desdobramentos judiciais, respeitou o sigilo de suas fontes, a pedido dos próprios entrevistados. Na internet, porém, é possível encontrar ofertas e pedidos de aluguéis de contas dos mais variados aplicativos, inclusive da Uber. 

Essa prática, aliás, não se limita ao território americano: França, Irlanda e Inglaterra são outros países onde imigrantes ilegais também burlam o sistema para fazer parte dos apps. 

Cerca de 100 mil motoristas trabalham para a Doordash só nos Estados Unidos, enquanto o Uber conta com 2 milhões de parceiros no país, segundo o portal The Ride Share Guy, voltado para os trabalhadores da gig economy

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