A decisão da Ford de interromper sua produção no Brasil, cerca de um século após sua chegada aqui, trouxe mais desalento ao macambuzio clima atual. Pergunta: há algo errado em um país que é abandonado por um parceiro longevo, que ocupa posição destacada no cenário mundial?
Doutrinados desde meados do século passado na tese de que a indústria é o único caminho para superação do subdesenvolvimento, a sensação de perda é natural. Talvez, este seja então um bom momento para analisarmos objetivamente o evento.
A primeira constatação é que industrialização na marra é um exercício em devaneio, com cruéis implicações sobre a sociedade como um todo. Note que, desde 1950, protegemos o “infante” setor automobilístico recorrentemente, seja com isenções tributárias, subsídios na veia ou barreiras à importação de similares.
Basta lembrar que até 30 anos atrás, a importação de veículos era totalmente proibida. Os mais velhos hão de se lembrar da guerra entre os estados, vencida pela Bahia, para atrair a fábrica do Ford. Em nome da geração de empregos, sacrificaram-se algumas gerações de consumidores, obrigados a comprar as “carroças” nacionais, como Collor rotulou a produção doméstica, ou a importar, pagando impostos exorbitantes.
E a prova do absurdo desta política vem com a decisão da Ford: nem com todos os trilhões de renúncia tributária, conseguimos enraizar as multinacionais no Brasil. Atraímos todas as grandes montadoras, que usufruem da nossa ingenuidade e se mandam, quando a imperiosidade de trabalhar com economias de escala prevalece.
Experimento semelhante, com fracasso apoteótico, foi a proibição de importação de produtos de informática e microeletrônica. Neste caso, o protecionismo foi ainda maior: só empresas nacionais poderiam participar da festa dos bilhões em subsídios concedidos. Atrasamos a entrada do País na era da automação, sem que nenhuma das empresas nacionais subsidiadas tenham sobrevivido, quando a abertura se tornou inevitável.
A segunda orientação a se tirar é que há sim uma rota eficiente para desenvolver localmente um setor industrial, na qual o tamanho do mercado doméstico é condição necessária, mas não suficiente. O complemento indispensável ao novo capital é dispor de mão de obra e capacitação empresarial à altura do desafio que se enfrentará.
A Embraer é um bom exemplo de sucesso, que começou em 1950, quando Brigadeiro Montenegro transformou um pântano, em São José dos Campos, na casa do Instituto Tecnológico da Aeronáutica.
O ITA, inaugurado com professores do MIT aportando o saber contemporâneo, educou os talentos que construíram primeiro um protótipo de teco-teco, depois o avô do Bandeirantes, até chegarem à gama diversificada de aviões que hoje se enquadram dentre os melhores do mundo.
Em Itaguaí, no Rio de Janeiro, a Marinha vem desenvolvendo um sofisticado polo de produção naval com centenas de engenheiros preparados para apropriar a tecnologia mundial de ponta na produção de navios e submarinos, com condições de competir, no futuro, no mercado internacional.
Inegavelmente, a indústria automobilística coreana, que em 1970 estava muito atrás da brasileira, seguiu este modelo vencedor, focando na capacitação tecnológica e se tornando hoje uma das líderes mundiais do setor.
“O charme da indústria como propulsor do desenvolvimento está minguando”
A terceira observação é que o charme da indústria como propulsor do desenvolvimento está minguando. A mudança de hábito de consumo, evoluindo do “possuir” para o “usufruir”, derruba o volume de produção necessária e encolhe a geração de empregos pelo setor.
Realmente, cada carro comprado para uso particular tem uma utilização média diária de, digamos, 2 horas. Nas mãos de um motorista de Uber, a utilização sobe para algo como 10 horas. Em conta de padeiro, a necessidade de frota vai-se reduzir a um quinto, sem contar a substituição do carro pela moto, bicicleta e transporte coletivo.
Por outro lado, a demanda por grãos só crescerá no mundo, seja para mitigar a fome das nações emergentes, seja para alimentar os animais que serão transformados em iguarias para os mais ricos. Portanto, reverenciar a tecnologia da produção de alimentos deverá render mais dividendos do que ambicionar a produção de bens de consumo industriais, em demanda cadente.
Neste contexto, brilha outro polo de desenvolvimento tecnológico notável: a Embrapa, há mais de meio século criando conhecimento, soluções agronômicas genuínas para problemas brasileiros, colocando-nos na fronteira da produção agropecuária mundial.
Promover artificialmente a produção doméstica, seja por empresas estatais, nacionais ou multinacionais, sempre se faz em detrimento do consumidor, obrigado a pagar mais pelo similar nacional.
Portanto, qualquer intervenção neste sentido tem que ser limitada e bem avaliado seu potencial de competir no mercado, a médio prazo, sem muletas. Entretanto, se não houver localmente capacitação tecnológico-empresarial para absorver e criar saber, o fracasso será o desaguadouro da boa intenção de fomentar o emprego e a modernização do País.
Luis Paulo Rosenberg é economista e consultor, com carreira destacada nas áreas acadêmica, empresarial e na atividade pública. PHD em economia pela Vanderbilt University, atuou como assessor do Ministro Delfim Neto, responsável pelos setores de Ciência, Tecnologia e Investimentos em Energia.Foi membro da equipe de negociação com o FMI, membro do Conselho de Administração da Cia. Suzano, Nestlé e Banco BBVA. Atualmente é sócio-diretor da Rosenberg Partners.