O enólogo francês radicado no Chile, Pascal Marty, é um aficcionado pelo universo do saquê e decidiu utilizar as leveduras orientais para fazer uma linha de vinhos, a Goutte d'Argent, em sua vinícola, a Vinã Marty. A prova de persistência começou em 2010 e o resultado é algo único.
Esta unicidade vem não apenas da expressão dos vinhos na taça, mas principalmente porque para utilizar os fermentos do saquê é preciso fazer parte da associação de produtores da bebida no Japão. Pascal Marty, que já esteve à frente do Opus One e do Almaviva, é o único ocidental a fazer parte da referida associação que oficialmente pode ter acesso e utilizar as leveduras autênticas.
Antes de entrar no impacto destes fermentos no vinho, vale esclarecer que, embora saquê seja o termo popularmente conhecido do fermentado de arroz, o nome correto para a bebida é Nihonshu. Saquê equivale ao termo genérico para qualquer bebida alcoólica japonesa.
Para se entender a importância das leveduras na produção do Nihonshu, uma pesquisa do Instituto de Tecnologia Industrial e Cultural de Quioto (KMIITC) concluiu que 60% dos aromas e sabores presentes na bebida resultam da ação das leveduras.
Segundo Avi Flaksberg, sócio da importadora SetWines, que acaba de assumir a importação desses vinhos de Marty, a oportunidade está justamente nos restaurantes japoneses no Brasil. “Como são vinhos que trazem referências do saquê, como o estilo seco e levemente salgado, apostamos neste canal de distribuição para o Goutte d’Argent”.
A importadora conseguiu uma alocação anual de 15 mil garrafas (divididas entre os três rótulos), quase 50% da produção anual atual da linha. Os vinhos devem chegar no Brasil nos próximos meses e ainda não estão com preços definidos. Pascal Marty, que esteve em São Paulo para justamente fechar negócio com o novo importador, contou com exclusividade ao NeoFeed parte da saga para chegar ao vinho.
“Desde a época de universidade aprendemos que quanto menor a temperatura de fermentação dos vinhos brancos, melhor é o resultado e integridade aromática”, diz Marty. Enquanto as leveduras do vinho branco fermentam a uma temperatura média de 12ºC, as leveduras de saquê trabalham entre 0ºC e 5ºC. “Era o que sonhava para ter o vinho branco mais íntegro possível”, relembra Marty sobre sua empolgação inicial.
Porém, como a vida prática do vinho costuma ser muito menos romântica, o primeiro resultado foi desastroso, segundo o enólogo. “As leveduras se reproduziam normalmente mas a velocidade de fermentação era muito lenta. Tinha uma árvore genealógica de leveduras com várias gerações dentro do mesmo tanque”, ironiza o enólogo, concluindo que no final teve um vinho basicamente com gosto de leveduras mais que das uvas (o contrário de sua tese inicial). “Era como um Champagne que ficou muito tempo com as leveduras, mas sem o gás”.
Para o lote inicial foi utilizada a aromática Sauvignon Blanc, de um vinhedo no costeiro vale de Leyda. A citada lenta fermentação durou 120 dias. A vinificação normal deste vinho duraria algo perto de duas semanas. Hoje, já com duas safras de aprendizado (estão chegando ao mercado os vinhos da safra 2020), Pascal Marty transformou seu vinho Goutte d’Argent em uma linha de vinhos, composta pelo Sauvignon Blanc, um Chardonnay e um tinto feito com a Pinot Noir. Todos os casos são feitos com uvas de Leyda e não passam por barricas de carvalho para ressaltarem as características do fermento de saquê.
De Bordeaux ao mangá
Pascal Marty se formou em enologia na universidade de Bordeaux e estreou como enólogo na icônica safra de 1982, no Château Mouton-Rothschild, um dos cinco produtores no elitizado grupo de 1er. Cru Classé no ranking de 1855 de Bordeaux. Logo também foi responsável por acompanhar uma parceria do Baron Philippe de Rothschild com uma vinícola californiana. “Na época ainda não havia um nome, mas fomos os responsáveis pelo desenho do projeto que depois recebeu o nome de Opus One, desde o primeiro minuto”, conta Marty.
Até 1996 o enólogo se dividiu na supervisão enológica dos châteaux de Baron Philippe e neste último ano na França, a Baronesa Philippine de Rothschild, sucessora do Barão, o convocou para começar um novo projeto da família, desta vez no Chile.
“Novamente era um projeto ainda sem nome, nos mesmos moldes de Opus One, mas em parceria com a local Concha y Toro”. Assim, Pascal Marty também foi o enólogo fundador de Almaviva e ali ficou até 2008, quando começou a fazer seu vinho no Chile (Viña Marty) e assumiu diversas consultorias nos Estados Unidos.
“Além de trabalhar em diversas regiões vinícolas, nesta época pude montar uma rede de investidores da minha vinícola no Chile (hoje são 19 investidores) e uma boa rede de importadores pelo mundo”.
Um destes importadores, que conhecia desde a época de Mouton-Rothschild, foi o que abriu as portas para o mundo do saquê. “Nosso importador no Japão me apresentou à comissão dos produtores do Japão e entendi que teria que me tornar um membro para ter acesso às leveduras”, resumindo a saga para conseguir o insumo.
“Foi um processo de seis anos! Tive que fazer diversas apresentações para a comissão, mostrando o que queria fazer, que conhecia o universo do nihonshu e não iria me apropriar de forma irresponsável de um patrimônio japonês”. “Mas, uma vez que me aceitaram, a relação é sólida como rocha, uma característica dos japoneses”.
Foi a própria comissão, com o apoio dos pesquisadores da Universidade de Tóquio, que ajudou na escolha das leveduras mais apropriadas para empregar nos vinhos. Segundo ele, existe um catálogo, com dezenas de leveduras de saquê, que é administrado e distribuído pela comissão dos produtores de saquê.
Assim, para o Sauvignon Blanc foi utilizada a levedura 7, empregada na produção de saquês mais delicados e complexos, da família junmai, e para a Chardonnay foi utilizada a levedura 9, conhecida por dar boa estrutura na boca e aromas mais pungentes. Na Pinot Noir foi utilizada a mescla dos dois fermentos.
O nome do vinho também foi um capítulo à parte. Embora pareça simples a associação do nome francês com a origem de Marty, o nome e o desenho do rótulo só foi decidido quando o vinho já estava pronto. “Entrar em projetos sem nome parece que é uma constante em minha vida”, ironiza o enólogo, recordando de Opus One e Almaviva.
Os autores do nome do vinho são os irmãos Yuko e Shin Kibayashi, criadores do mangá que ilustra uma saga de personagens em busca dos melhores vinhos do mundo Kami no Shizuku, ou Drops of God (Les Gouttes de Dieu, na França). O mangá foi um sucesso global e superou a marca de 15 milhões de cópias em circulação (até agosto de 2021).
“A dupla Kibayashi é muito amiga, quando levei o vinho para provarem, deram o nome e desenharam o rótulo, foi uma honra”, comentou Pascal Marty, ressalvando que o nome original do vinho é Gin no Shizuku (literalmente "gota de prata" ou Goutte d’Argent).