Um dos termos mais badalados da atualidade é o metaverso. Aliás, o termo não é novidade, foi criado no início dos anos 1990 e inspirou diversas tecnologias, como o Second Life. Muitos games sofisticados também usam o conceito de mundos virtuais como o Fortnite. Portanto, o conceito não surgiu quando o Facebook mudou o nome para Meta. Ele apenas se tornou “hype”.
Engraçado que até Mark Zuckerberg fazer a famosa mudança de nome, a maioria das pessoas nem sabia que o metaverso já existia. Hoje muitas empresas até repaginam suas propagandas para mostrar que já possuem produtos no metaverso. E especialistas em metaverso nasceram do dia para a noite. Criaram funções como Chief Metaverso Officer. E, claro, de um momento para o outro, pipocaram palestras e eventos sobre o tema.
Apesar de tanta empolgação, há motivos para cautela. O metaverso ainda não é um conceito bem sedimentado, com diversas definições diferentes entre si, rolando pelo mercado. Como nos primeiros dias da internet, o metaverso embute muito de especulação, supervalorização e investimentos imprudentes, especialmente porque um verdadeiro metaverso, como imaginam os visionários da tecnologia, ainda está a anos de distância.
Na prática, o metaverso é hoje como o Clube da Luta. E a primeira regra do metaverso é que ninguém sabe o que é o metaverso. É como uma daquelas manchas de Rorschach, aqueles testes de personalidade com base na análise das interpretações que cada pessoa faz de diferentes manchas de tinta, onde cada um vê nelas algo diferente.
O que precisamos é separar a realidade do hype: entender o que é realmente o metaverso e tomar medidas práticas e acessíveis para atender às necessidades da sua empresa nesse contexto.
O metaverso promete um mundo digital 3D incrivelmente realista onde você pode comprar e vender bens e serviços, assinar e fazer cumprir contratos, recrutar e treinar talentos e interagir com clientes e comunidades.
O Second Life já fazia tudo isso, mas com as limitações tecnológicas da época. No início dos anos 2000, não era possível criar um mundo virtual realista. Lembro que, em 2007, no CONARH (Congresso Nacional sobre Gestão de Pessoas) apresentei a palestra “Existe vida dentro dos chips? Negócios e trabalho no mundo virtual”, em que mostrei os casos de uso do Second Life nas empresas.
Os exemplos incluíam o varejo (design personalizado em um ambiente 3D: como os produtos ficarão em sua casa?), entretenimento (concertos do Duran Duran e U2), mídia (as experiências da Fox e BBC), meetings virtuais, laboratórios sociais (University of California, Davis: Peter Yellowlees, professor de psiquiatria da UCD usando Second Life para simular e criar experiências com esquizofrenia), educação e treinamento, recrutamento (entrevistas entre candidato e recrutador) e outros casos diversos.
Tivemos também em 2006, a primeira pessoa a fazer US$ 1 milhão em compra e venda de propriedades virtuais, o avatar Anshe Chung, que chegou a ser capa de revista de negócios
O Second Life caiu em desuso, mas continua vivo, embora com pouca badalação. É usado basicamente nos EUA. Em 2021, o Second Life registrou cerca de 64,7 milhões de usuários ativos em sua plataforma. Organizações como a Universidade de Stanford, a American Cancer Society e a Adult Swim continuam usando a plataforma para eventos virtuais.
Assim, claramente, o metaverso é uma evolução, não uma revolução. Com as tecnologias atuais, como os headsets de realidade virtual, você poderá visitar uma fábrica do outro lado do mundo, ver e tocar virtualmente suas máquinas, e apertar, também virtualmente, a mão do gestor local, sem sair de sua mesa de trabalho.
O metaverso pode mudar profundamente a forma como empresas e consumidores interagem com produtos, serviços e entre si. E, claro, os riscos também são reais: novas tecnologias exigem novas estratégias e métodos para construir e manter confiança e credibilidade.
O metaverso pode mudar profundamente a forma como empresas e consumidores interagem com produtos, serviços e entre si
O que devemos fazer é buscar conectar sinais que apontem para uma visão de futuro. Por exemplo, a tecnologia de computação em nuvem provê o poder de processamento e o armazenamento para dar suporte à Realidade Aumentada e às interfaces imersivas. As redes hiperconectadas que aproveitam o 5G estão começando a chegar à maturidade.
A IA está ajudando a criar reflexões digitais que combinam visão computacional, fala e Deep Learning para oferecer aos usuários experiências que parecem reais. A descentralização das finanças e da economia, apoiada pelo blockchain, está possibilitando sistemas financeiros parcialmente automatizados.
Por fim, os consumidores nativos digitais e o impacto da pandemia nos hábitos de consumo estão despertando a demanda pelos produtos e experiências virtuais que o metaverso se propõe a oferecer. Se conectarmos esses sinais, mesmo sabendo que ainda precisamos evoluir em muito uma série de requisitos, não devemos ignorar o metaverso.
Para chegarmos a um metaverso universal, e não ficarmos presos em ilhas virtuais de cada fornecedor, precisamos resolver a questão da interoperabilidade: um mundo digital onde possamos fazer a transição entre as várias experiências oferecidas pelos diversos provedores.
Essa conectividade exigirá uma nova arquitetura para a internet. Entretanto, quer essa visão chegue um dia ou não, já existem componentes suficientes do metaverso para oferecer oportunidades, hoje.
É interessante, entretanto, explorar o seu potencial, fazendo experimentações. Sem experimentarmos, não saberemos quando e como usar o metaverso. Mas, antes de mergulharmos a fundo, devemos lembrar que o metaverso precisará de regras de engajamento para os usuários, e mecanismos de fiscalização, inclusive para cobrança de impostos, governança de dados e conformidade regulatória.
Isso é importante, pois questões relacionadas à falta de controle possibilitam uso inadequado da tecnologia, como reportado em “Metaverse app allows kids into virtual strip clubs”.
A privacidade e segurança serão primordiais, pois um novo mundo digital descentralizado pode oferecer às pessoas mal-intencionadas um novo e aberto mundo de novas possibilidade para ataques. Autenticidade e confiança de forma mais ampla, também deve ser considerada com atenção, para reduzir a desinformação que hoje assola as redes sociais.
Na internet de hoje, a identidade está ligada a plataformas. Pode ser uma identidade verdadeira, pseudônimo ou anônimo. O metaverso, descentralizado e interconectado, precisará de identidades digitais confiáveis, tanto para pessoas como para os ativos e organizações, que sejam portadas entre as plataformas.
As experiências que vemos hoje, em sua maioria, são feitas muito mais para efeitos de marketing, como uma ação pontual para criar imagem de “modernidade”, do que para avaliar o pleno potencial do metaverso. De maneira geral, são casos de uso de menor risco, como a venda de versões digitais de bens físicos, a oferta de tours virtuais de produtos ou instalações. É um primeiro passo, mas sem uma estratégia e visão por trás, essas experiências pouco servirão de aprendizado.
As experiências que vemos hoje, em sua maioria, são feitas muito mais para efeitos de marketing, como uma ação pontual para criar imagem de “modernidade”
No cenário do metaverso, as gerações mais jovens provavelmente passarão a maior parte do tempo online em um espaço virtual compartilhado, que se torna uma verdadeira comunidade global. Eles vão se conectar a vários “versos” onde poderão trabalhar juntos, ter aulas, interagir socialmente, e comprar e fornecer produtos virtuais.
Entre as muitas novas oportunidades possibilitadas pelo metaverso está uma nova experiência de varejo que combina o engajamento das compras físicas com a enorme variedade oferecida pelo e-commerce. Varejistas e plataformas de comércio eletrônico podem alavancar suas redes de fornecedores e prover melhor experiência de compras, incluindo ferramentas que permitam que os consumidores experimentem e testem produtos.
As empresas de consumo podem criar versões virtuais de seus produtos atuais que são aprimoradas para a vida do metaverso, bem como variantes e atualizações desses produtos atuais. Os fabricantes podem lançar produtos conceituais e protótipos no metaverso para testar as reações do mercado e coletar feedback antes de colocar em produção, reduzindo assim o custo de P&D e a incerteza quanto à reação do mercado.
Produtos de consumo e provedores de serviços podem criar versões somente digitais de bens e serviços que atendam à experiência virtual personalizada, incluindo jogos e móveis personalizados em residências virtuais. Novas plataformas que integram produtos digitais de bricolagem podem se disseminar, à medida que o metaverso reduzir as barreiras que limitam amadores de produzir conteúdo por conta própria.
Na economia da experiência, as pessoas não apenas compram e vendem produtos, serviços ou recursos. Eles também querem as experiências e emoções por trás deles. No metaverso, esse paradigma poderá se tornar mainstream. As pessoas poderão pagar grandes quantias por itens intangíveis que forneçam significado social e ofereçam experiências relevantes.
Assim, para explorar esse novo contexto, não basta contratar uma empresa de marketing para criar uma experiência no metaverso se seu atual site e app nem oferecem o mínimo de experiência positiva para seus clientes.
O metaverso será muito mais exigente com relação às experiências que a internet de hoje. Tenha, antes de mais nada, uma estratégia que repense como você se engaja com seus clientes e como seu modelo de operação estará ajustado para uma experiência verdadeiramente integrada entre o mundo físico e o virtual.
Na sua estratégia de uso do metaverso considere alguns pontos:
1) Desejabilidade. Vamos imaginar que podemos construir um metaverso. O que realmente oferecerei de novo para meus clientes? E aqui, não basta dizer, "o metaverso vai proporcionar experiências de compras mais emocionantes". Especificamente, quais funcionalidades, otimizações ou experiências atrairiam seus clientes? Precisamos especificar os casos de uso para os quais uma solução metaverso será a melhor alternativa.
2) Praticabilidade. Hoje, apenas uma fração dos usuários de smartphones e laptops tem um headset de RV. Se o possuem, provavelmente é um produto Oculus e, se o usarem regularmente, é para fins de entretenimento. Seu perfil de clientes tem condições de comprar esses equipamentos em número significativo? Usarão para outras ações que não seja entretenimento?
3) Viabilidade. Como vamos ganhar dinheiro? A captura de dados descritivos do comportamento do usuário é a base de muitos dos modelos de negócios digitais. Os dados dos clientes manterão seu alto valor em um mundo de avatares e realidades alternativas? Que novos modelos de negócios podem ser construídos sem esses dados? Os modelos de negócios atuais são transferíveis para o metaverso ou devemos considerar novos modelos que correspondam melhor ao conceito proposto por ele?
E, antes de ir mais a fundo, lembre-se que o metaverso oferece novos desafios para segurança cibernética, direitos de privacidade, conformidade regulatória, reputação de marca e esforços antifraude. Temos muitas implicações sérias de privacidade, que aparentemente não estão sendo endereçadas com a atenção necessária, como podemos ver em “VR Headset Hacks Could Steal Sensitive Information".
Portanto, não envolva apenas a área de marketing ou uma consultoria focada em marketing, mas adicione também profissionais de negócios e de tecnologia que tenham condições de integrar seus sistemas de back-office com o novo interface, e considerar a segurança no nível dos serviços, para que, independentemente de onde seu ativo vá, a segurança seja mantida.
E, não esqueça que para promover a confiança entre consumidores, acionistas, reguladores e outras partes interessadas, comunique antecipadamente o que eles devem esperar de suas iniciativas de metaverso e como você irá mitigar os potenciais riscos. Seja bem claro tanto nos benefícios como nos riscos.
Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.