Veneza - Um papa narcisista e bronzeado passeia por uma praia veneziana usando apenas uma sunga branca, ao lado de mulheres de biquíni que o cobiçam. À noite, freiras de camisolas ainda dançam sensualmente sob luzes estroboscópicas diante do crucifixo gigante e fluorescente do monastério.
É longa a lista de “pecados” que o diretor italiano Paolo Sorrentino comete em “The New Pope”, continuação da série “The Young Pope” (2016), que segue provocando a Igreja Católica, ao pintar o Vaticano do jeito que o diabo gosta.
No ar desde 17 de abril no Brasil, no canal Fox Premium, a sátira extravagante de Sorrentino brinca com a vaidade e arrogância papal, a corrupção no mais alto escalão do Vaticano, a homossexualidade de padres, o assédio sexual entre freiras e até com cardeais pedófilos em busca de perdão.
“Se é engraçado, por que, não? Não existem tabus ou limites na minha imaginação”, contou o diretor napolitano de 49 anos, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro com “A Grande Beleza” (2014), ao desdenhar da alta sociedade romana.
Não incomoda Sorrentino o fato de o Vaticano condenar o retrato burlesco da Igreja na série. O “Observador Romano”, o jornal da cidade do Vaticano, reclamou da “frivolidade ao tratar dos dogmas da fé católica” e do “olhar cáustico sobre a cúria do Vaticano”. O autor do texto, o teólogo espanhol Juan Manuel de Prada, também identificou “perfídia” na abordagem do diretor.
“Mas esse teólogo, que é muito próximo do Papa Francisco, reconheceu também a minha admiração pela Igreja”, afirmou Sorrentino ao Neofeed, em Veneza, antes do início do surto de coronavírus na Itália.
O diretor que procura reproduzir toda a suntuosidade do Vaticano, ao reconstituí-lo nos estúdios Cinecittà, se refere ao trecho em que Prada escreveu: “Embora queira levar tudo na brincadeira, Sorrentino não consegue deixar de levar a Igreja muito a sério”.
O padre Gianmatteo Caputo, encarregado do patrimônio cultural de Veneza, não vê graça na série, criticando principalmente a sequência de abertura de “The New Pope”.
O “Observador Romano”, o jornal da cidade do Vaticano, reclamou da “frivolidade ao tratar dos dogmas da fé católica” e do “olhar cáustico sobre a cúria do Vaticano”
Rodada em um monastério desativado da cidade dos canais, ela traz freiras dançando embaixo do crucifixo, como se estivessem em uma boate. Em um comunicado oficial, Caputo chamou a cena de “ofensiva” e disse que “não há contexto narrativo que justifique o conteúdo”.
De volta à série, no papel de Lenny Belardo/Pio XIII, o papa que fuma, bebe Coca-Cola e fala palavrão, o ator Jude Law entende a necessidade artística de Sorrentino de desafiar o que é considerado sagrado.
“Aqui mesmo em Veneza, quando mostrávamos ‘The Young Pope’, Paolo já me falou de novas ideias para o meu personagem. Naquele momento, parecia impossível que Lenny pudesse ir ainda mais longe”, contou o ator inglês, de 47 anos.
Ao ser questionado se concorda com a famosa frase do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), “Se Deus não existe, tudo é permitido”, Law respondeu com uma versão própria. “Se Deus existe, tudo é permitido”, disse ele, rindo.
Como o título “The New Pope” sugere, Pio XIII precisará ser substituído às pressas, após entrar em coma aparentemente irreversível. Mas o fato de ganhar um sucessor, Sir John Brannox /João Paulo III (John Malkovich), não o impedirá de continuar brincando com a noção de santidade atribuída aos papas, nem que seja em sonho.
A cena sensual em que o papa chega de sunga branca ao paraíso é prova disso. “Aquela roupa de banho não é a menor que eu já vesti. Há uma cena em que uso só um guardanapo. Até tirei foto por ser o menor figurino que já recebi”, contou Law, bem-humorado.
Tirar a roupa do papa é natural para Sorrentino, que desde “The Young Pope” deixa o espectador na dúvida se o pontífice bonitão é um messias, um anticristo ou apenas um homem comum.
“Não é uma provocação e sim uma realidade. Em algum momento do dia, é certo que o papa fica nu”, afirmou o diretor, lembrando que é função da arte questionar.
Em uma cena, uma multidão de fiéis está de vigília em frente ao Vaticano, para ouvir a respiração do papa em coma, que é transmitida ao vivo pela rádio. Em outra, o papa João Paulo III apresenta a ideia de legalizar o casamento (tanto heterossexual quanto homossexual) para o clero, a fim de acabar com o abuso sexual dentro da igreja.
Embora tenha estudado em escola católica, Sorrentino se define como agnóstico. “Gostaria de ser religioso, mas não consigo, o que não me impede de continuar levantando questões. Na Teologia, há apenas perguntas e nada de respostas. É por isso que estou sempre na dúvida se eu deveria acreditar em algo como intervenção divina ou não.”
Com ideias já para uma terceira parte da série, ainda sem previsão de lançamento, o diretor não é contra a Igreja, apesar do sarcasmo com que a retrata. “Só tento representá-la em todos os aspectos, bons e ruins.”
Mas o ruim acaba prevalecendo. Seja ao mostrar as manobras do Vaticano diante da ameaça de perder os benefícios fiscais do governo ou o desespero de um cardeal em busca de absolvição.
Quando o espectador ouve o pensamento de cardeais enumerando as qualidades desejadas em um novo papa, um religioso com a consciência pesada ora para que pontífice eleito conceda o perdão aos pedófilos.