Os fatos geopolíticos mais marcantes dos últimos dois anos – a invasão da Ucrânia pela Rússia e o agravamento das relações comerciais e econômicas entre Estados Unidos e China –, aliados ao crescimento da inflação no Primeiro Mundo, estão causando um impacto inesperado no sistema monetário internacional: a crescente procura dos bancos centrais pelo ouro como fonte alternativa ao dólar como reserva internacional de ativos.

De acordo com World Gold Council, órgão comercial independente que monitora o mercado de ouro, a quantidade do metal comprada pelos bancos centrais aumentou 152% em 2022 e explica o rápido aumento da cotação do lingote, de 20% nos últimos seis meses. As 1.136 toneladas de ouro adquiridas pelos BCs ao longo do ano passado configuraram o maior fluxo de aquisição das autoridades monetárias desde a década de 1950.

A partir do Congresso de Viena de 1815 até o início da Primeira Guerra Mundial, a economia global esteve baseada no padrão-ouro. Na prática, o valor da moeda de cada país correspondia às suas reservas em ouro, o que tornava o ativo uma espécie de “câmbio fixo”, mas que dependia da quantidade de ouro guardada.

De acordo com o economista Carlos Honorato, professo da FIA Business School, não há risco de o sistema financeiro internacional voltar ao padrão-ouro, entre outros motivos, por não existir mais quantidade disponível suficiente do metal.

“Mas essa procura mostra que os BCs correm para aquilo que tem menos risco em tempos de instabilidade política e econômica”, diz Honorato, referindo-se à procura pelo ouro em meio à chamada “tempestade perfeita”, que une as crises geopolíticas ao aumento da inflação. Para se ter uma ideia, durante a crise bancária de março nos EUA, o ouro continuou subindo enquanto o dólar caía.

Novo cenário

A Pesquisa de Tendências de Gestão de Reservas, levantamento do HSBC com 83 bancos centrais, que administram US$ 7 trilhões em ativos cambiais, classificou a alta da inflação (listada por 70%) como uma de suas preocupações mais importantes para mirar o ouro. O risco geopolítico, citado por 40% dos representantes dos BCs, porém, chamou a atenção pelo fato de ter sido o dobro do mesmo levantamento, feito em 2021.

A invasão russa levou a aliança ocidental capitaneada por EUA, Reino Unido e União Europeia a adotar sanções financeiras que congelaram cerca de US$ 300 bilhões em ativos do BC russo. Como a Rússia mantém suas reservas de ouro no próprio país, esse tipo de ativo não foi afetado pelas sanções.

A percepção, principalmente entre os países em desenvolvimento, é de que o dólar como fonte de pressão política dos EUA está ganhando mais importância do que como moeda de referência monetária.

O temor de ser o próximo da lista de sanções explica o fato de que, entre 10 BCs que aumentaram sua compra em ouro recentemente, 9 estão em países emergentes. A lista inclui países do Oriente Médio e da Ásia Central.

O yuan chinês, por sinal, se beneficiou como fonte alternativa ao dólar. Como a China ignorou as sanções contra a Rússia, pagando em sua moeda a importação de petróleo, a participação da moeda chinesa no mercado de câmbio russo já chega próximo de 50%, ante menos de 1% no início de 2022.

A primazia do dólar no sistema financeiro internacional, porém, ainda é incontestável. Segundo dados do FMI, o dólar representou 58% de todas as reservas de BCs do mundo inteiro durante o quarto trimestre do ano passado. O euro representou pouco mais de 20% e a moeda chinesa, apenas 2,7%. A pesquisa foi fechada em meados de março.

A China pretende, no entanto, aproveitar sua forte presença comercial global para melhorar as transações em sua moeda. Para isso, lançou em 2015 o Sistema de Pagamento Interbancário da China, o Cips, na sigla em inglês. Passados quase 8 anos, o Cips ainda opera à margem do Swift, que representa o principal sistema para pagamentos internacionais e tem como moeda dominante o dólar.

Os países emergentes dos Brics – bloco que reúne África do Sul, Brasil, China, Índia e Rússia – vêm pregando a ideia de negociar uns com os outros diretamente, em sua própria moeda. “Todas as noites me pergunto porque os países têm que basear seu comércio no dólar”, disse recentemente o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, em visita à China.

As palavras de Lula refletem uma tendência em curso. Embora o dólar representasse 80,42% do total das reservas internacionais do Brasil no final do ano passado, o yuan chinês (5,37%) ultrapassou o euro (4,74%) e se tornou a segunda moeda mais importante nas reservas internacionais brasileiras, de acordo com um relatório do Banco Central divulgado no final de março.