O leilão do megaterminal de contêineres do Porto de Santos, o Tecon 10, previsto para ocorrer no começo de 2026, ganhou um novo e polêmico capítulo na terça-feira, 16 de dezembro, com a decisão do Ministérios dos Portos de acatar todas as recomendações feitas na semana passada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em relação ao modelo do edital proposto pela Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários).
Com isso, mais três exigências que dividem especialistas serão incorporadas ao modelo de edital do leilão, que agora deve passar por ajustes pela estatal Infra S/A para que seja publicado.
A regra inicialmente proposta pela Antaq determina que o certame seja realizado em duas fases. A primeira ficaria restrita a empresas sem operação de contêineres no porto, para evitar concentração de mercado.
Se não houver interessados - hipótese pouco provável de ocorrer, pois ao menos 10 grandes empresas globais do setor devem participar do leilão -, a disputa será aberta aos atuais operadores de contêineres em Santos, como os grupos MSC, Maersk, associados na BPT, além da CMA CGM e DP World. Dessa forma, caso um armador (empresa dona de navios) vencesse a disputa, a companhia seria obrigada a se desfazer do seu ativo atual.
O TCU, porém, não só aprovou o modelo proposto pela Antaq como incluiu outras três recomendações que tinham caráter orientativo, ou seja, poderiam ser adotadas ou não pela agência.
Uma delas, na prática, foi vetar definitivamente a participação no leilão de armadores, independentemente de terem ou não operações no complexo santista. A recomendação tira do leilão a gigante chinesa Cosco, que transporta cerca de 10% dos contêineres em circulação no planeta em mais de 500 navios, sendo a quarta maior armadora global (perde apenas para a suíça MSC, a dinamarquesa Maersk e a francesa CMA CGM).
Outra recomendação prevê a adoção de um mínimo de outorga, cujo valor e premissas serão definidos em conjunto com a Antaq.
A terceira e polêmica sugestão do TCU foi a de impor como investimento obrigatório do vencedor do leilão a construção de um pátio ferroviário interno com capacidade mínima de escoamento de 900 TEUs (Unidade Equivalente a 20 Pés, na sigla em inglês) por dia.
O novo terminal ocupará 622 mil m², ampliando em 50% a capacidade de carga. O leilão deve arrecadar R$ 6,5 bilhões em outorga, com investimento de R$ 40 bilhões em 25 anos. O projeto prevê até 3,5 milhões de TEUs/ano – cada TEU representa um contêiner de 20 pés, ou cerca de 6 metros –, quatro berços de atracação e um terminal de passageiros.
Especialistas e executivos do setor ouvidos pelo NeoFeed criticaram o “canetaço” do TCU e a decisão do MPor de incorporar as sugestões. Alguns já haviam criticado a decisão de deixar de fora do leilão operadores do porto e todos acharam excessiva a decisão de vetar armadores de fora, como a chinesa Cosco - que deve se juntar aos atuais operadores do porto excluídos da disputa e judicializar a questão.
Há também reserva quanto à obrigação do vencedor da disputa de construir um pátio ferroviário interno. A percepção é de que a nova regra deve impactar diretamente a capacidade de investimento da empresa vencedora e tende a afastar players menos capitalizados, reforçando o caráter seletivo do certame.
Direcionamento
“Acredito que os beneficiados são claros: qualquer operador que não esteja em Santos, e empresas que não têm hoje estrutura ou experiência para um projeto deste porte e importância”, resumiu um alto executivo do setor que preferiu manter o anonimato.
Felipe Kfuri, sócio da área de Infraestrutura do escritório L.O. Baptista Advogados, observa que a restrição à participação de armadores tem fundamento concorrencial, na medida em que busca evitar integração vertical excessiva e práticas discriminatórias em um porto altamente concentrado como Santos.
No entanto, a vedação ampla, aplicada indistintamente a armadores com ou sem operação no complexo santista, na visão do especialista, pode ser considerada excessiva, pois prescinde de análise concreta de poder de mercado e elimina soluções menos restritivas.
“Nesse contexto, é juridicamente consistente o argumento de que essa avaliação poderia ser realizada a posteriori pelo Cade, autoridade legalmente competente para analisar atos de concentração, com a possibilidade de aprovação, reprovação ou imposição de remédios concorrenciais, inclusive desinvestimentos”, diz, lembrando que essa alternativa preservaria a competitividade do certame e permitiria uma análise caso a caso.
Para Kfuri, a regra tende a beneficiar operadores portuários independentes e investidores financeiros ao reduzir a concorrência no leilão, mas pode resultar em propostas menos agressivas e menor pressão competitiva.
Daniela Poli Vlavianos, do escritório Arman Advocacia com vasta atuação em contratos logísticos, afirma que essa restrição acatada pelo Mpor encontra fundamento jurídico claro na lógica concorrencial que rege o setor portuário brasileiro.
O ponto sensível, contudo, está na extensão da vedação para armadores que não possuem operação atual no complexo santista, como é o caso da Cosco. “Há, sim, um possível exagero regulatório ao se afastar, de forma abstrata e preventiva, um player global relevante, sem demonstração concreta de risco concorrencial imediato no mercado específico do Porto de Santos”, diz Vlavianos.
Segundo ela, o risco de judicialização é real: “Uma empresa como a Cosco possui legitimidade e interesse jurídico suficientes para questionar a legalidade e a proporcionalidade da restrição, especialmente sob os argumentos de violação à livre iniciativa, à isonomia entre concorrentes e à ausência de análise concorrencial individualizada.”
Outro executivo do setor portuário que concordou em falar sem se identificar endossou as críticas, mas elevou o tom. “Restringir armadores que não operam em Santos só faz sentido quando se direciona o certame a um player, praticamente embrulhado para presente, como o que estamos vendo nesse caso”, dispara o executivo, que não esconde a irritação com a “sucessão de erros” na elaboração do edital.
“Lógico que em um leilão uma restrição como essa não faz o menor sentido e é totalmente controversa ao objetivo principal do leilão, que é ampliar a capacidade da movimentação de contêineres com eficiência”, emenda, lembrando que não há embasamento técnico que colabore com essa visão. “Tanto que estabelecer uma outorga mínima é o mesmo que reconhecer que o leilão está direcionado.”
Em relação à exigência de construção de um pátio ferroviário interno pelo investidor, o executivo acha que, em face do total de investimento, a exigência não é relevante. “Era mais um tema de discussão de governança do investimento que deveria ser feito no âmbito da FIPS”, diz, referindo-se à Ferrovia Interna do Porto de Santos, uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) que gere a operação e expansão da infraestrutura ferroviária no porto santista.
Para Kfuri, do escritório L.O. Baptista Advogados, a exigência de implantação e operação de infraestrutura ferroviária interna modifica o perfil econômico do projeto, ao introduzir investimentos elevados, retorno de longo prazo e maior exposição a riscos de demanda e de coordenação com agentes externos.
“Esses fatores reduzem a previsibilidade dos fluxos de caixa e aumentam a complexidade da modelagem financeira, exigindo estruturas de financiamento mais robustas, maior volume de garantias e menor flexibilidade operacional”, diz.