O governo federal prepara um decreto que deve flexibilizar algumas normas do marco regulatório de saneamento (Lei nº 14.026/2020), que entrou em vigor em julho de 2020.

Entidades e especialistas ouvidos pelo NeoFeed acreditam que as normas, que devem estender prazos para municípios e empresas estatais se adequarem ao marco, a princípio não devem prejudicar os investimentos privados em andamento. Mas o setor não esconde o temor do que pode vir pela frente.

“O decreto não deve mexer na principal meta estabelecida pelo marco regulatório, que é a universalização do saneamento básico do País", afirma Luana Pretto, CEO do Instituto Trata Brasil, organização social que atua no setor. "Mas algumas medidas podem atrasar o cumprimento dessa meta, previsto para 2033.”

O Marco Legal do Saneamento definiu que as empresas de saneamento do País, públicas e privadas, precisam garantir, nos próximos dez anos, o atendimento de água potável a 99% da população e o de coleta e tratamento de esgoto a 90% até 2033.

O temor de mexer no marco se deve a uma razão objetiva: em dois anos de vigência do novo arcabouço do saneamento, a iniciativa privada participou com a maior parte dos cerca de R$ 90 bilhões em investimentos e outorgas assegurados por meio de concessões para implantar, expandir ou melhorar os serviços em cerca de 225 municípios brasileiros.

Em dezembro de 2022, a Aegea, o maior grupo nacional de saneamento, arrematou a Corsan (Companhia Riograndense de Saneamento) por R$ 4,1 bilhões. Essa foi a primeira estatal privatizada desde que o marco entrou em vigor.

Desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, o governo vem prometendo  “aperfeiçoamentos” no marco, em especial nos pontos que se referem a empresas estatais e à atuação dos municípios.

Uma das medidas deve ampliar a presença de parcerias público-privadas (PPPs) em contratos de saneamento - hoje limitada em 25% do valor do contrato de estatais para fechar parcerias com o setor privado. Não há maiores restrições do setor privado a essa alteração.

Outra medida prevista é dar aval para que as companhias estaduais regularizem contratos com municípios que, antes da lei de 2020, já eram considerados inadequados, porque estavam vencidos ou em desacordo com a legislação anterior, de 2007.

Em entrevista recente ao NeoFeed, Leonardo Soares, então CEO da Cedae, a estatal do Rio de Janeiro, explicou que qualquer mexida no marco poderia levar à insegurança jurídica e ao afastamento de potenciais investidores.

Levantamento do Trata Brasil mostrou que mais de mil municípios estão em situação irregular. Dois terços estão sem contrato ou com contrato vencido, e em um terço a companhia estadual não demonstrou capacidade econômico-financeira para cumprir a meta de saneamento.

“A meta estipulada em contrato é um dos pontos fortes do marco, abrir mão disso é um risco muito grande para a universalização”, diz Pretta.

Também é previsto uma ampliação do prazo para que as prefeituras que prestam o serviço de saneamento diretamente se juntem a algum bloco regional. A exigência, prevista no marco, tinha como objetivo obrigar grandes municípios a bancar os pequenos, sem recursos para universalização.

Pela regra atual, a partir do fim de março de 2023, as cidades que não aderirem ao bloco regional não podem mais acessar recursos federais.

ANA na mira

A medida mais temida por especialistas do setor - a possibilidade de o governo mexer nas atribuições da ANA (Agência Nacional de Águas), que elabora as normas de referência de saneamento – pode não sair do papel.

“Seria uma medida politicamente desgastante e desnecessária, pois como se refere a uma agência reguladora, precisaria de aprovação do Congresso”, afirma Frederico Favacho, sócio do escritório Santos Neto Advogados, especialista em Direito Ambiental, Infraestrutura e Logística.

Seria uma segunda tentativa de mexer na ANA. Na estreia do novo governo, no dia 1º de janeiro, uma medida provisória e um decreto tentaram tirar da agência parte de suas funções, mas a repercussão foi tão ruim que o governo recuou.

“Retirar funções da ANA poderia trazer insegurança jurídica, pois a agência conta com equipe técnica que valida as outras 85 agências infranacionais de saneamento”, diz Pretto. “Se a atribuição de saneamento passar para a administração direta, passa a ter o risco de indicação política para cargos de perfil técnico."

O setor privado companha com tensão a edição do decreto. Resignado, Percy Soares Neto, diretor executivo da Abcon, associação das operadoras privadas de saneamento, diz que o segmento espera que não haja mudanças significativas do marco regulatório e que o decreto não preveja mudanças legislativas.

“O importante é que seja mantida a capacidade econômico-financeira prevista pelo marco”, diz Soares. “Seja quem for o operador – publico ou privado -, que tenha condições efetivas e concretas de realizar o investimento."

Segundo levantamento da Abcon, seriam necessários R$ 893,3 bilhões de investimentos nos próximos dez anos para atingir a meta, que resultaria um ganho de R$ 1,4 trilhão no Produto Interno Bruto (PIB) até 2033, com a criação de 1,5 milhão de postos de trabalho.