O americano Chris Miller ficou chocado quando descobriu que a China gasta mais dinheiro importando chips semicondutores do que petróleo. Foram US$ 350 bilhões contra US$ 330 bilhões, só no ano passado. A informação obtida em um banco de dados das Nações Unidas deixou Miller tão incrédulo que ele precisou baixar o mesmo arquivo várias vezes para ter a certeza de que estava certo.
O episódio serviu como combustível para o professor de história internacional da Tufts University, em Massachusetts, mergulhar de cabeça na pauta dos chips semicondutores. Os 5 anos de pesquisa estão reunidos nas 464 páginas de Chip War (ainda sem tradução e previsão de lançamento no Brasil), eleito pelo britânico Financial Times como o melhor livro de negócios do ano de 2022.
“Decidi escrever Chip War quando percebi a dependência gigantesca que o mundo globalizado tem dos chips semicondutores”, explica Miller com exclusividade ao NeoFeed. “Todas as nações avançadas necessitam desses chips para diferentes propósitos, que passam pelo desenvolvimento tecnológico e pelo uso militar.”
Em Chip War, o historiador econômico explica como os chips semicondutores são cada vez mais relevantes para que potências como Estados Unidos e China continuem atuando como nações hegemônicas. Miller destaca, por exemplo, que os chips foram fundamentais para os EUA superarem a União Soviética no contexto da Guerra Fria.
Ele também fala sobre a crescente tensão ao redor de Taiwan, que detém 90% da produção, e sobre como a batalha para controlar essa indústria moldará o futuro das nações. “O futuro da guerra será moldado pelo poder da computação.”
Para o Financial Times, que concedeu a Miller um prêmio de 30.000 libras esterlinas no começo do mês, “o livro é um relato convincente que explica uma indústria muito complicada de forma digerível”. Acompanhe a entrevista de Miller ao NeoFeed:
Você dedicou cinco anos estudando a indústria global de chips semicondutores. Por que as pessoas também deveriam ficar atentas a esse tema?
Decidi escrever Chip War quando percebi a dependência gigantesca que o mundo globalizado tem dos chips semicondutores. Todas as nações avançadas necessitam desses chips para diferentes propósitos, que passam pelo desenvolvimento tecnológico e pelo uso militar. Mas o cenário atual é que Taiwan fabrica 90% dos chips de processador mais avançados do mundo, criando tensões entre as maiores potências orientais e ocidentais.
"O cenário atual é que Taiwan fabrica 90% dos chips de processador mais avançados do mundo, criando tensões entre as maiores potências orientais e ocidentais"
Quais são as principais implicações dessa disputa para a economia e a política mundial?
Hoje, à medida que o poder militar da China cresce, também cresce a ameaça a Taiwan, que os militares da China prometeram conquistar por meios pacíficos e que o Partido Comunista Chinês considera uma província rebelde. A massiva modernização militar de Pequim envolveu não apenas a construção de novos aviões, navios e tanques, mas também a implantação de sensores, comunicações e sistemas de computação de ponta. Os chips estão no centro de todos os equipamentos militares, fornecendo informações, comunicação e recursos de detecção para guiar as munições em direção ao alvo. A modernização militar da China se beneficiou de seu esforço para alcançar as capacidades de fabricação de chips.
Quem são os principais atores da guerra dos chips e qual deles tem a maior vantagem atualmente?
Atualmente, os chips mais avançados do mundo só podem ser produzidos por uma complexa cadeia de suprimentos envolvendo Holanda, Japão, Estados Unidos e Taiwan. As empresas de cada um desses países produzem máquinas essenciais e insubstituíveis. Isso dá a essas empresas uma alavancagem crítica para determinar quais países podem produzir semicondutores avançados e quais não podem. Sem suas ferramentas, a fabricação de chips é simplesmente impossível. A China, que produz muitos chips, mas pouquíssimo maquinário de fabricação de chips, é, portanto, altamente dependente dessas outras potências.
"Os chips mais avançados do mundo só podem ser produzidos por uma complexa cadeia de suprimentos envolvendo Holanda, Japão, Estados Unidos e Taiwan. As empresas de cada um desses países produzem máquinas essenciais e insubstituíveis"
No seu livro, você menciona que a China investe mais em chips semicondutores do que em qualquer outro produto, incluindo petróleo. Quais são as ambições chinesas?
A ambição da China, conforme declarado por seu governo, é importar menos chips e produzir mais semicondutores em casa. O objetivo é desglobalizar, tornando a China menos dependente de importações de tecnologia avançada. Se a China tivesse sucesso, isso redesenharia o mapa econômico, impactando países da Ásia que hoje dependem criticamente das vendas de chips para a China. Além do mais, se a China atingir capacidades de ponta, ela as implantará em sistemas militares, corroendo a vantagem militar dos EUA e intensificando o risco para Taiwan. E a probabilidade de uma grande guerra na Ásia.
A China pode alcançar a liderança dos EUA em tecnologia de chips em algum momento no futuro?
A China fez progressos substanciais nas capacidades de design de chips nos últimos anos. As empresas chinesas podem produzir designs quase de ponta nos chips de smartphones, por exemplo, ou nos chips usados para IA em data centers. No entanto, a China continua muito atrasada quando se trata de máquinas necessárias para fabricar chips com precisão. Hoje, a China importa quase todas as máquinas usadas na fabricação de chips, principalmente dos Estados Unidos, Japão e Holanda. Levará anos para a China aprender a domesticar esse maquinário, se é que isso acontecerá.
"A China importa quase todas as máquinas usadas na fabricação de chips. Levará anos para a China aprender a domesticar esse maquinário, se é que isso acontecerá"
Taiwan produz a maior parte dos chips globais. Uma invasão militar chinesa para controlar esse mercado é inevitável?
Não, porque uma invasão chinesa não conseguiria adquirir as instalações de fabricação de chips intactas. Uma guerra provavelmente destruiria as instalações de fabricação de chips. Se não fossem destruídos, o pessoal que possui conhecimento e experiência únicas provavelmente fugiria. Se eles não fugissem, as ferramentas nas instalações de Taiwan não funcionariam sem materiais e expertise do exterior. De qualquer forma, os EUA podem muito bem destruí-los para evitar que caiam nas mãos da China. No entanto, isso não significa que uma guerra é improvável. O Partido Comunista Chinês deseja controlar Taiwan desde 1949, antes da invenção do primeiro semicondutor. Para os líderes da China, Taiwan é muito mais do que chips.
No livro, você afirma que a expertise dos EUA com os chips ajudou o país a vencer a União Soviética no contexto da Guerra Fria. Como isso aconteceu?
A principal transformação do poder militar na última década foi a aplicação de recursos de computação a sistemas militares. Hoje, os equipamentos militares modernos dependem fundamentalmente de capacidades de computação, detecção e comunicação que só são possíveis graças aos chips. Os sistemas militares costumam ter dezenas, centenas ou até milhares de chips. Esses chips permitem identificar alvos, comunicar-se com outros sistemas militares e destruir alvos com ataques de precisão a longas distâncias. Os EUA dominaram a capacidade de implantar recursos de computação para suas forças armadas muito antes da URSS. Os soviéticos, por outro lado, tentaram vencer a corrida armamentista construindo mais sistemas em vez de sistemas mais inteligentes. Essa foi uma estratégia ruim que levou seus militares a ficarem para trás.
Com o avanço da tecnologia, os chips serão fundamentais para vencer os conflitos do futuro?
Sim. Tudo, desde drones autônomos até sistemas avançados de guerra eletrônica, requer chips para computação, comunicação e detecção. O futuro da guerra será moldado pelo poder da computação.
Os Estados Unidos e a China encontrarão equilíbrio diplomático sobre a guerra dos chips?
A grande mudança no cenário de segurança da Ásia nas últimas duas décadas foi a expansão dramática do potencial militar da China. Mais navios, mais aviões, mais mísseis e, recentemente, mais armas nucleares. Esse acúmulo provocou um aumento dramático nos gastos com defesa do Japão e um novo alinhamento entre países como Austrália, Índia e Japão para combatê-lo. Os EUA estão empenhados em manter sua vantagem militar. Administrar a corrida armamentista desencadeada pelo rearmamento da China não será fácil.