Praticamente dois anos após entrar em vigor, o chamado Marco Legal das Ferrovias (Lei 14.273, de 2021), que facilita investimentos privados no transporte ferroviário, passou por modificações importantes na quarta-feira, 4 de outubro, com a decisão do Congresso Nacional de derrubar 19 vetos à lei feitos pelo então presidente Jair Bolsonaro ao sancioná-la, em dezembro de 2021.

A grande inovação do Marco Legal das Ferrovias foi a criação do regime de autorização ferroviária, abrindo espaço para uma concorrência com as concessionárias que operam as linhas existentes.

Neste aspecto, as alterações não devem reduzir nem os investimentos das concessionárias, que somam R$ 156 bilhões (em valores atualizados), nem o grande número de pedidos de autorizações ferroviárias, que já tiveram 43 contratos de adesão assinados, com previsão de R$ 225 bilhões de investimentos, o que ampliariam a malha ferroviária nacional em 12 mil quilômetros, caso implementados.

A derrubada dos vetos atendeu algumas das expectativas do setor. Para as concessionárias, por exemplo, causou alívio o direito à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos quando houver ferrovias novas autorizadas que atuem na área de influência da concessão.

As concessionárias poderão ainda exercer a preferência, nos primeiros cinco anos de vigência da lei, até 2026, na obtenção de autorização de nova ferrovia se o trajeto estiver dentro da área de influência da empresa. Essa recomposição pode se dar por redução do valor da outorga, aumento do teto tarifário, supressão da obrigação de investimentos ou ampliação do prazo contratual.

Para as empresas que apresentaram projetos com pedidos de autorizações ferroviárias na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) ficou assegurada, com a derrubada dos vetos, a proibição de que as concessionárias recusem, sem justificativa, o transporte de cargas.

Para Frederico Favacho, sócio do escritório Santos Neto Advogados e especialista em infraestrutura, as mudanças na lei dão mais segurança jurídica aos investidores e corrigem algumas distorções da lei como ela havia sido sancionada.

“Os vetos que caíram, na sua essência, aumentam o grau de fiscalização do Estado em concessões e autorizações e eliminam a visão estritamente liberal de um mínimo de intervenção do Estado no setor”, diz, citando o veto, que acabou derrubado, que permitia às concessionárias o direito de recusar o transporte de carga de uma autorizada.

Segundo ele, os 43 contratos de autorizações ferroviárias assinados na vigência do veto, não retroagem. Mas os processos em andamento, mais de 100, teriam de fazer nova rodada para apresentação de propostas.

Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, acredita que as alterações trarão mais segurança jurídica aos investidores em autorizações ferroviárias.

“Muitos desses projetos certamente vão ter trechos que vão se entroncar com os de concessionárias, clarificar a questão que as concessionárias não poderão simplesmente recusar o direito de passagem vai facilitar no planejamento de viabilidade financeira dos projetos”, diz Quintella. Ele observa, no entanto, que o direito de passagem ainda precisa ser melhor definido.

Malha em expansão

O Brasil possui 30 mil quilômetros de ferrovias, mas 62,1% dos trilhos encontram-se subutilizados e 23,7%, ociosos. Hoje, apenas 21% do volume total de cargas do país é transportado por ferrovias. O agronegócio, por exemplo, só transporta 40% dos grãos por ferrovias.

O potencial de crescimento é real. Por enquanto, seis concessionários já fizeram antecipação de renovação de contrato, com investimentos de R$ 30 bilhões.

Um estudo da A&M Infra, consultoria especializada em infraestrutura, concluído em julho, mostrou que 53% pedidos de autorizações para implementação de ferrovias privadas autorizadas pela ANTT foram para companhias que não têm garantia de carga e ainda não operam no setor.

A conclusão do estudo é que, como o investimento em ferrovias costuma ser elevado, o risco é alto - ainda mais levando-se em conta que a média da extensão dos novos corredores pedidos por esse tipo de empreendedor chega aos 700 quilômetros.

O estudo alinha três fatores críticos para o andamento dos projetos de autorização desde a sanção do marco das ferrovias: o desenvolvimento dos projetos de engenharia, o licenciamento ambiental moroso e, como consequência dos dois primeiros, a falta de fundings assegurados por contratos de carga, que não conseguem ser gerados pela falta de licenças que garantam que o projeto será realizado.

Procuradas pelo NeoFeed, a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) – que atua em nome das 13 malhas concedidas à iniciativa privada – e a Associação Nacional das Ferrovias Autorizadas (ANFA) ainda não haviam manifestado posição oficial em relação aos vetos derrubados pelo Congresso até a conclusão desta reportagem.

Após a publicação da reportagem, a ANFA enviou a seguinte nota:

"Embora a derrubada de alguns vetos possa vir a aumentar a burocracia e o tempo de análise para deferimento das propostas, retardando novos investimentos privados, entendemos que o resultado final garante segurança jurídica aos investimentos privados em ferrovias já em discussão e/ou em andamento;

Também destacamos a necessidade de se ampliar a discussão sobre regras claras de interconexão das autorizatárias nas linhas troncais bem como a melhoria do ambiente geral de negócios. Esses serão pontos essenciais na modelagem financeira das ferrovias autorizadas."