Sem o alarde de quando seu projeto foi anunciado há 36 anos pelo então presidente José Sarney, a Ferrovia Norte-Sul teve concluído nesta quinta-feira, 25 de maio, o último trecho ainda em obras, entre Palmeiras de Goiás e Goianira, no interior de Goiás.
No total, são 2,2 mil quilômetros de trilhos que rasgam o interior do País em sete grandes trechos, entre as cidades de Açailândia (MA) e Estrela d’Oeste (SP), passando por quatro das cinco regiões do Brasil (Centro-Oeste, Norte, Sudeste e Nordeste).
Ainda não está prevista uma cerimônia oficial de inauguração, o que deve ocorrer em breve. Mas não deixa de ser irônico uma obra de proporções faraônicas ser concluída de forma tão discreta, sem discursos ufanistas como da época em que foi anunciada.
O projeto original da Ferrovia Norte-Sul tinha 4.155 quilômetros de extensão, saindo do porto de Itaqui (MA) até o porto de Rio Grande (RS), o que explica o nome dado à ferrovia. Mas uma sucessão de atrasos, escândalos de corrupção e falhas bisonhas de projeto - como bitola de trilhos diferentes em alguns trechos - motivaram a mudança para um novo trajeto, definido em 2008.
O impulso econômico em logística, infraestrutura e investimentos que a ferrovia deverá levar à Região Centro-Oeste, no entanto, é o maior trunfo desse projeto que - mesmo encurtado pela metade - mantém uma grandiosidade que lembra uma Transamazônica sob trilhos.
“A Ferrovia Norte-Sul representa um sonho antigo para a infraestrutura logística brasileira, principalmente quando olhamos para a Malha Central, que acaba de ter as obras concluídas”, diz Guilherme Penin, vice-presidente de Regulação e Expansão da Rumo, empresa que opera o maior trecho da concessão, de 1.537 quilômetros, entre Porto Nacional (TO) e Estrela d’Oeste (SP).
Ele prossegue: “A tendência é de uma atração de investimentos, que resultará em ganho de escala na oferta de produtos, mais oportunidades de emprego e maior participação econômica de estados como Goiás e Tocantins.”
A partir de agora, três estados sem saída para o litoral (Goiás, Tocantins e Minas Gerais) passam a escoar sua produção de grãos e outras cargas por meio de duas interconexões ferroviárias, ao norte e ao sul, para os portos de Itaqui (MA) e Santos (SP). A VLI, empresa controlada pela mineradora Vale, opera a outra concessão, um trecho de 720 quilômetros entre Açailândia (MA) e Porto Nacional (TO).
Opção ao modal rodoviário
Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Infraestrutura, Supply Chain e Logística da Fundação Dom Cabral, observa que a Norte-Sul será a primeira ferrovia inaugurada no País nos últimos 15 anos e destaca o impacto que vai causar numa região que concentra a maior produção de grãos do País.
“A Norte-Sul vai garantir uma redução de preço do transporte de commodities pois junta duas variáveis essenciais: a economia de escala e a economia de distância”, diz, lembrando que um único comboio ferroviário carrega mil toneladas de soja, quantidade de carga que exigiria 30 caminhões para ser transportada numa rodovia.
De acordo com cálculos do setor, além do ganho de escala no transporte sobre trilhos, o custo do frete ferroviário para distâncias acima de 600 quilômetros equivale a 30% do desembolsado no modal rodoviário.
“O que tem de quebrar agora é como se define o preço do frete ferroviário, não dá mais para usar o modal rodoviário como referência”, diz Resende, citando aumento de combustível ou greve de caminhoneiros como variáveis de preço. “O frete ferroviário deve ser resultante de uma formação natural do próprio modal.”
Boa parte do trajeto da Norte-Sul é tomado pelo agronegócio, com produção de milho, soja, açúcar e fertilizantes. As cargas transportadas por trilhos em 2023 devem chegar a 27 milhões de toneladas, contra 2 milhões de toneladas dez anos atrás.
Para se ter uma ideia do potencial, a Ferrovia Norte-Sul foi projetada com estimativa de transportar mais de 60 milhões de toneladas de carga ao ano. Com isso, o modal ferroviário tende a atrair investimentos em logística em Goiás, Tocantins e Mato Grosso.
Rio Verde, cidade no sul de Goiás por onde passa a Norte-Sul, é um exemplo. A prefeitura local ofereceu incentivos e já atraiu cerca de R$ 1 bilhão de investimentos com terminais ferroviários desde 2020, quando a Rumo inaugurou um trecho da Norte-Sul entre Rio Verde e Estrela d’Oeste (SP), para escoar cargas rumo ao porto de Santos.
“Além do agronegócio e da indústria, os segmentos de líquidos (combustíveis), fertilizantes, minério e cargas gerais (por meio da operação de contêineres da Brado) também abrem espaço para que a Rumo possa expandir sua operação futuramente”, diz Penin, vice-presidente da concessionária. “Em breve, teremos ainda em Rio Verde um outro terminal para líquidos, enviando etanol para Paulínia (SP) e com os trens voltando carregados com diesel e gasolina.”
Tocantins, que mais que dobrou sua produção de grãos em dez anos, está sendo alvo de investimentos da outra concessionária da Norte-Sul, a VLI, que deverá transformar seu terminal na cidade de Palmeirante em um polo de fertilizantes e, no futuro, de outros produtos agrícolas.
Novas ferrovias
Com a inauguração da Norte-Sul, o modal ferroviário passa a ser responsável por 23% da matriz de transportes de cargas do Brasil, muito longe da participação nos EUA (43%) e Rússia (81%). Se comparado ao modal rodoviário, que transporta 60% das cargas do País, há espaço para crescer.
Resende, da Fundação Dom Cabral, estima que o transporte de carga por ferrovias deverá crescer 4,2% ao ano até 2035, bem maior que o rodoviário, apenas 1,1% ao ano. Em 2035, portanto, cerca de 30% das cargas do País serão transportadas por ferrovias.
Parte desse crescimento previsto está atrelado a dois fatores. Um deles é a janela aberta pelo novo Marco Legal das Ferrovias, que há dois anos criou o regime de autorização ferroviária, pelo qual a empresa interessada apresenta projeto no qual fica encarregada de obter licenciamentos junto aos órgãos competentes, de tocar os projetos de engenharia e de viabilidade socioambiental, além da busca de financiamento para construir e explorar novos trechos, a maioria para transporte de cargas.
As autorizações ferroviárias poderão gerar investimentos privados de R$ 170 bilhões em 19 estados – a maioria ainda no papel, incluindo a retomada do projeto do trem-bala entre São Paulo e Rio de Janeiro.
Na prática, o novo marco abriu espaço para uma concorrência entre o setor privado, por meio do regime de autorização, e as concessionárias que operam as linhas existentes. Essas estão às voltas com sua própria agenda, incluindo a renovação antecipada de concessões de vários trechos, que podem gerar R$ 30 bilhões de investimentos.
O projeto mais avançado é o da Ferrovia de Integração Centro Oeste (FICO), de R$ 2,7 bilhões, que será viabilizada com dinheiro da Vale e gestão da Valec, como contrapartida pela prorrogação antecipada do contrato de concessão da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM).
Com 383 km de extensão, liga Mar a Rosa (GO) a Água Boa (MT). As obras, iniciadas em 2021, devem ser concluídas em 2026. “A FICO é essencial porque fará a integração do Centro-Oeste para a Ferrovia Norte-Sul”, diz Resende.
Já a VL tenta concluir a renovação antecipada da FCA (Ferrovia Centro Atlântica) ainda em 2023. A proposta é renovar antecipadamente o contrato, que vence em 2026, por mais 30 anos, em troca de investimentos na ordem de R$ 14 bilhões, além do pagamento de uma outorga de R$ 3,3 bilhões. Maior ferrovia do Brasil, com 7.220 km de extensão, a FCA é a principal via de integração entre as regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste, conectando sete estados e o Distrito Federal.
O último grande projeto pode sair de um imbróglio jurídico em breve. Trata-se da Ferrogrão, uma ferrovia de 1.072 quilômetros, que vai ligar Sinop (MT) aos portos de Miritituba e Santarém, no Pará.
A ferrovia, que deveria ser concluída em 2021, teve suas obras paralisadas por uma Ação de Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6553, em virtude de questões ambientais. A ferrovia atravessa duas reservas indígenas.
Na última quarta-feira, 24 de maio, procurador-geral da República, Augusto Aras, deu parecer favorável à construção da Ferrogrão. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, também apoia a conclusão da ferrovia, alegando motivos ambientais. “Se houver poucas locomotivas substituindo viagens de 3 mil caminhões por dia, o impacto em emissões será grande”, diz. O STF deverá julgar a ação no próximo dia 31.
O interesse do setor privado em investir em ferrovias indica que os custos da Ferrovia Norte-Sul, um constante alvo de críticas ao longo de 36 anos do projeto, ao final podem ter sido modestos – excluindo, claro, os desvios de verbas milionárias, impossíveis de serem calculados.
Existe um custo médio estimado pelo mercado de R$ 6 milhões por km de ferrovia construída, o que elevaria a conta da Ferrovia Norte-Sul em cerca de R$ 13,2 bilhões. Mas apenas entre 2001 e 2022, o Brasil investiu R$ 15 bilhões do Orçamento da União na Norte-Sul, de acordo com dados atualizados da Infra S.A, empresa pública encarregada de projetos de infraestrutura.
Parte desse valor gasto começou a voltar aos cofres públicos ainda em 2008, quando VLI pagou R$ 1,4 bilhão pela concessão do seu trecho de 720 quilômetros da Norte-Sul. Em 2019, a Rumo ganhou a concessão do outro trecho, bem maior, de 1.537 quilômetros, pelo qual pagou R$ 2,7 bilhões em outorga, quase o dobro do mínimo exigido, e investiu desde então R$ 4 bilhões na ferrovia, incluindo novos trens.
O especialista da Fundação Dom Cabral lamenta que a Ferrovia Norte-Sul não tenha sido implementada em sua totalidade na década de 1980 – o que elevaria a participação ferroviária brasileira na matriz de transporte para 43%, a mesma dos EUA.
“Cometemos erros, pois naquela época não existia concessão ferroviária para iniciativa privada, era inteiramente estatal, e não tínhamos demanda, pois a fronteira agrícola ainda não estava desenvolvida”, diz Resende.