Uma nova ofensiva no Senado para aprovar um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que altera uma legislação do setor elétrico aprovada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) após ser discutida durante três anos está causando revolta entre empresas, especialistas, gestores e associações que atuam no segmento.
O PDL 365/2022, de autoria do deputado Danilo Forte (União-CE), deve ser votado na próxima semana na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, após permanecer dois anos na gaveta.
O texto prevê a revogação de uma decisão da Aneel de 2022, após ampla discussão em três audiências públicas, que implantou o chamado sinal locacional nas tarifas de transmissão - mecanismo que diferencia o custo do uso da rede conforme a distância entre geradores e centros consumidores.
A regra é bem simples: cobra um valor adicional de quem faz mais uso do sistema – ou seja, as unidades consumidoras mais distantes das usinas geradoras – e menor daqueles que dependem menos da infraestrutura de transmissão.
Em termos práticos, desde que entrou em vigor, em 2023, o sinal locacional reduziu a conta de luz de 18 estados do Norte e Nordeste – onde estão localizadas a maioria das usinas renováveis que abastecem o sistema elétrico –, mas elevou os custos das usinas geradoras nessas regiões, pois elas precisam usar as linhas de transmissão para enviar a carga para o Sudeste e Sul do país, onde há mais consumo.
O objetivo do PDL é beneficiar esses geradores instalados principalmente no Nordeste, mesmo que a sua aprovação prejudique os consumidores dessa região.
De quebra, se a nova regra for aprovada, deverá agravar o problema do curtailment – os cortes de geração renovável pelo Organizador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para evitar sobrecarga do sistema, causada pelo excesso de oferta de energia renovável em relação ao consumo.
Isso porque estimularia a instalação de mais usinas no Nordeste, região que concentra o maior parque de geração renovável do País e a maioria das usinas centralizadas alvo de cortes do ONS. Além de ampliar o curtailment, a mudança de regra vai exigir mais investimentos em linhas de transmissão, elevando o custo total da energia.
“O sinal locacional trouxe uma lógica benéfica a consumidores do Norte e Nordeste, do ponto de vista do custo de uso do sistema de transmissão, que esse PDL simplesmente está ignorando”, diz Gabriel Mann, diretor de Regulação, Estratégia e Comunicação da Engie Brasil.
A Engie é uma das empresas que têm se posicionado de forma crítica a projetos aprovados no Congresso que prejudicam o setor elétrico.
Segundo Mann, o PDL tem o objetivo claro de beneficiar os projetos de usinas renováveis no Nordeste, para que se viabilizem e fiquem mais baratos, para que os existentes paguem menos tarifa de transporte e os novos fiquem mais competitivos.
“Não deixa de ser um contrassenso, não precisamos de mais projetos nessa região se não tivermos mais demanda”, acrescenta o diretor, lembrando que o custo maior para os geradores no Nordeste imposto pelo sinal locacional não chegou a causar redução de investimento. “Se há menos investimentos é devido ao curtailment, que tende a piorar com esse estímulo.”
Para Mann, o problema do curtailment está sendo mais uma vez mal endereçado, citando o caso da Engie.
“Alguns dos projetos nossos que estão sofrendo cortes têm contratos no chamado ambiente regulado, com as distribuidoras, incluindo de energia de reserva”, diz ele. “Além de perder receita, corremos o risco de sofrer penalidade por não entregar a energia prevista pelo contrato, apesar de os cortes não ocorrerem por iniciativa nossa, mas do ONS.”
Autonomia em risco
Além do impacto na conta de luz de regiões mais vulneráveis, o PDL abriu um novo capítulo na conturbada relação entre o Congresso Nacional e a Aneel, que mais uma vez vê sua autonomia ameaçada por interesses políticos setoriais no Legislativo.
“A Aneel aprimorou o sinal locacional, conforme previsto em sua lei de criação, o que se revelou uma decisão correta”, afirmou Sandoval Feitosa, diretor-geral da Aneel, durante evento esta semana, ao ser questionado sobre o PDL 365.
“Vamos insistir no debate técnico, respondendo a questionamentos legítimos do Parlamento e mantendo um processo democrático e aberto, mas somente a Aneel possui competência institucional para tratar de tarifa de energia elétrica, sua metodologia de cálculo e seus impactos reais”, advertiu.
Para o presidente da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Energia Elétrica (Apine), Rui Altieri, o PDL traz, além dos problemas citados, mais insegurança jurídica ao setor. Ele observa que a regulamentação da Aneel sobre o sinal locacional foi construída ao longo de quatro anos e várias consultas públicas, dentro da competência legal da agência.
“Se o Congresso não concorda com o papel da Aneel, deve alterar a lei e não sustar uma resolução normativa, o que nunca aconteceu”, afirma Altieri.
Luiz Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, coalizão que representa diversos setores do consumo de energia no Brasil, observa que o sinal locacional busca sinalizar corretamente onde construir usinas para minimizar expansão de rede e custos.
“O PDL 365, impulsionado por lobby de geradores do Norte/Nordeste, reverteria esse avanço, por isso o trâmite no Senado é decisivo", diz Barata.
Segundo ele, há preocupação ampla do setor com interferência política em normas técnicas, inclusive via PEC das Agências em tramitação no Congresso, indicando riscos à independência regulatória e à sustentabilidade do setor elétrico.
“É preciso barrar esse PDL na Comissão de Constituição e Justiça, pois em plenário a aprovação é mais provável”, afirma o presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia.
Como o projeto é no formato de decreto legislativo, nesse caso o PDL viraria lei de forma automática, sem possibilidade de veto presidencial – que tem sido usado como última arma para barrar jabutis incluídos em projetos de lei e medidas provisórias do setor elétrico aprovados no Congresso.