O governo federal prevê oito leilões de concessões ferroviárias em 2026, que devem movimentar R$ 530 bilhões em investimentos de longo prazo. É o que assegura, em entrevista ao NeoFeed, o secretário nacional de Ferrovias do Ministério dos Transportes, Leonardo Ribeiro.

A agenda, que pode soar ambiciosa em uma área que ficou 15 anos sem inaugurar um quilômetro sequer de novas linhas férreas, não é a única notícia. Ribeiro indica que a pasta conseguiu viabilizar uma fórmula para atrair investimentos privados sem aportes desproporcionais do governo, permitindo concessões de linhas férreas ainda no papel.

“O ano de 2026 será o da transformação ferroviária do País, graças à combinação de uma estratégia inovadora de funding mesclada com financiamento por debêntures e um novo ambiente regulatório, que dará segurança jurídica e atrairá novos players”, afirma Ribeiro.

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed reconhecem os avanços da atual gestão e elogiam as inovações nas modelagens, mas duvidam que tantos leilões saiam do papel em tão pouco tempo. Um deles é o da Ferrogrão, projeto com 933 km entre Sinop (MT) e Miritituba (PA), envolvido em debate ambiental e à espera de decisão do STF.

Há também questionamentos sobre a viabilidade do pacote já em 2026, ano eleitoral, incluindo a complexidade dos empreendimentos e os prazos legais, de pelo menos dois anos, para audiências públicas e outros ritos antes do leilão.

Por trás desse pano de fundo, há o desafio histórico do setor. A malha ferroviária brasileira tem 30.653 km, dos quais 19 mil km estão ociosos — ou seja, apenas 26% da capacidade instalada é utilizada, segundo o TCU.

Mesmo com apetite do setor privado, os grandes aportes exigidos – a construção de cada quilômetro de trilhos custa R$ 25 milhões – demandam também investimento público robusto, segurança jurídica e planejamento de longo prazo, condicionantes que paralisaram o setor anos a fio.

Fluxo de investimentos

Ribeiro, porém, mantém o otimismo. Segundo ele, o grande legado da atual gestão é do ter destravado, de forma integrada, gargalos que há anos rondam o setor, abrindo espaço para novos projetos e concessões.

A estratégia de funding – captação de recursos para financiar projetos – foi o grande salto. “A ideia é viabilizar concessões de ferrovias ainda inexistentes fisicamente, transferindo ao setor privado a construção e operação, com apoio governamental a fundo perdido, sem custo de financiamento público”, diz Ribeiro.

A diferença-chave em relação à Parceria Público-Privada (PPP) tradicional é a ausência de contraprestação pública na operação. “O apoio estatal concentra-se no investimento inicial, que é o funding, não na operação”, diz Ribeiro.

O modelo foi adaptado de países asiáticos, como Índia, Indonésia e China, baseado em três frentes: repactuações de contratos, obras públicas e novas dotações orçamentárias.

O secretário nacional de Ferrovias do Ministério dos Transportes vê na repactuação uma solução para a falta de recursos públicos, pois o dinheiro pago pela concessionária ao repactuar o contrato não vai para o Tesouro, podendo ser destinado aos projetos da área. 

“As repactuações com MRS e Rumo resultaram em contas vinculadas e investimento cruzado, permitindo direcionar recursos privados, devidos ao poder público, para projetos ferroviários, sem uso do orçamento”, afirma Ribeiro.

O governo já arrecadou cerca de R$ 30 bilhões em repactuações nos últimos anos, mas o quanto será investido em novos projetos ferroviários é uma decisão de governo que está em discussão, de acordo com a pasta.

Outra alternativa, embora mais lenta, são as obras públicas em andamento, como a construção da Fiol 2 (Ferrovia Oeste-Leste), conduzida pela estatal Infra S/A. O trecho de 485 km, entre Caetité e Barreiras, na Bahia, tem obras contratadas até o ano que vem para finalização e posterior concessão.

A terceira frente vem do próprio Orçamento do governo. “Há R$ 500 milhões previstos para o próximo ano, privilegiando disciplina e constância plurianual em vez de volume concentrado”, afirma o secretário.

Na sexta-feira, 31 de outubro, o ministro Renan Filho, dos Transportes, anunciou aporte de R$ 200 milhões para o primeiro trecho de 73 quilômetros entre Custódia (PE) e Arcoverde (PE) do ramal pernambucano da Ferrovia Transnordestina. O governo pretende licitar no total quatro trechos, somando cerca de 230 quilômetros, na ligação entre Salgueiro e o Porto de Suape.

Dos 550 km do trecho pernambucano, 180 km já foram feitos pela TLSA (Transnordestina Logística S.A.), que acertou a devolução da ligação Salgueiro-Suape com o governo em 2022.

Outros dois eixos, além do funding, compõem a estratégia do governo. Um deles envolve o financiamento do setor privado por meio de debêntures emitidas pelo BNDES – entre 2023 e 2025, o volume chegou a R$ 32 bilhões.

“O funding é um aporte não reembolsável para implantação de projetos; o financiamento é um empréstimo com obrigação de pagamento de juros, mas tem custo mitigado por incentivos fiscais às debêntures de infraestrutura”, explica Ribeiro.

Já o terceiro pilar, os mecanismos de garantia, está sendo estruturado para dar segurança jurídica aos investimentos por meio do Fundo de Desenvolvimento de Infraestrutura Sustentável (FDIRS), presidido pelo MDR, para contratar garantias para os aportes.

“O plano de expansão de novas linhas férreas da secretaria não gera impacto fiscal do ponto de vista patrimonial", diz Ribeiro. "As transferências de recursos não serão gastos correntes na forma de contraprestação, pois são ferrovias autossustentáveis quando implantadas, por isso não precisamos usar a Lei 11.079/2004, de PPP."

Segundo ele, os recursos do plano serão transferidos para implantação de bem público reversível. "Sai dinheiro, entra novo patrimônio ferroviário, que tornará nossa economia mais eficiente, com redução de custo logístico."

O objetivo final da estratégia é dobrar a participação das ferrovias na matriz de transporte do Brasil, afirma o secretário da pasta. Hoje, cerca de 20% das cargas são transportadas por ferrovias, bem menos que os 62% pelo modal rodoviário.

Corredor Fico-Fiol: projeto mais atraente

EF-118: ferrovia de 575 km deve ir a leilão

Ferrogrão: aprovação pendente no STF

Essa modelagem econômico-financeira para o setor ferroviário já vem ajudando a viabilizar várias novidades surgidas nos últimos anos, das autorizações ferroviárias – que permitem ao setor privado construir e explorar ferrovias de forma mais ágil e flexível do que o modelo de concessão tradicional à criação das chamadas “ferrovias inteligentes”.

Modelo híbrido, que mistura concessão com autorização ferroviária, as ferrovias inteligentes visam a aproveitar pelo menos 10 mil km de trechos ociosos da malha e oferecê-los ao setor privado via PPP, por meio de contrato de autorização mediante um processo seletivo, de chamamento público.

Ribeiro afirma que a pasta está estruturando projetos que se encaixam nessa modelagem e cita um exemplo. “Na repactuação do contrato com a Ferrovia Transnordestina Logística (FTL), que ainda não foi ratificada pelo TCU, estamos estruturando a implantação de dois VLTs no Nordeste, para transporte de passageiros, usando a malha ociosa da FTL”, afirma. Outros seis trechos de transportes de passageiros estão em estudo.

Entre as autorizações ferroviárias, que passaram por uma revisão regulatória em 2023, Ribeiro afirma que elas finalmente devem sair do papel em 2026. Ele cita o projeto da Arauco, empresa chilena de madeira e celulose, que vai construir e explorar um ramal ferroviário de 47 km em Inocência (MS). A empresa investirá cerca de R$ 800 milhões no projeto.

Segundo Ribeiro, o Corredor Minas-Rio - trecho de 500 km devolvido pela Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) - será ofertado ao setor privado via chamamento público, com interessados já identificados.

“Além dos chamamentos públicos, já regulamentados, serão lançadas a política de outorga ferroviária, para concessões de carga e passageiros, e a política de devolução de trechos, com segurança jurídica para migrarem a chamamentos”, esclarece. “Tudo com portfólio infralegal, com portarias e resoluções, que sustentarão a execução e a governança dos projetos.”

Entre os leilões, a grande aposta do governo é o corredor Fico-Fiol, com traçados reconfigurados para evitar direitos de passagem e ampliar atratividade, totalizando cerca de 2.700 km de leste a oeste do País, com trajeto que segue a Rota Bioceânica – cujo objetivo é o porto de Chancay, no Peru, e rota de exportação para a China.

A Fiol 1, trecho fora do leilão, está em análise por grupo de trabalho para possível incorporação ao corredor, diante da limitação de investimentos da concessionária (Bamin).

Além do corredor, estão no pipeline de leilões de 2026 outros grandes projetos. Um deles é a EF-188, ferrovia de 575 km que conectará Nova Iguaçu (RJ) a Santa Leopoldina (ES). A relicitação da Malha Oeste, que era operada pela Rumo, prevê um novo contrato de concessão com 1.625 km de ferrovia entre Mairinque (SP) e Corumbá (MS), no primeiro semestre de 2026. Também está previsto leilão para o trecho de 477 km entre Açailândia (MA) e Barcarena (PA), da Ferrovia Norte-Sul.

O governo também decidiu desmembrar em três leilões as ferrovias da chamada Malha Sul, que englobaria Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, cujo contrato da Rumo Logística acaba em 2027.

Por fim, o último leilão previsto para 2026 é o da Ferrogrão. Apesar de o STF ainda não ter concluído o julgamento da constitucionalidade da alteração dos limites do Parque Nacional do Jamanxim para viabilizar a construção da ferrovia, o projeto para concessão está andando.

Segundo Ribeiro, a liminar no STF que envolve o projeto não impede que o estudo da concessão seja encaminhado para o TCU, o que deverá ser feito ainda este ano.

“O setor privado demonstra mobilização, com possibilidade de viabilização sem aporte governamental, dado o potencial volume de cargas entre Sinop (MT) e Miritituba (PA)”, diz o secretário. O custo da Ferrogrão, porém, é estimado entre R$ 25 bilhões e R$ 28 bilhões.

Demanda reprimida

Paulo Resende, coordenador do núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, observa que o setor ferroviário está pagando o preço pelo vácuo histórico de anos sem investimentos, perdendo espaço para o modal rodoviário.

“A demanda por carga é alta, porém os custos por quilômetro para construir ferrovia e o passivo histórico exigem realismo de cronograma e garantias robustas para viabilizar os investimentos até 2040”, afirma Resende.

Segundo ele, é inegável o potencial de demanda dos principais projetos ferroviários. “Como os três setores principais que tendem a ocupar as ferrovias – papel e celulose, etanol de milho e cana e granéis agrícolas – têm demanda garantida, o investidor certamente virá”, diz.

Resende acredita que o corredor Fico-Fiol é, de longe, o que mais tem atratividade. Mas adverte para o maior investidor em potencial – o capital chinês, que construiu o maior porto graneleiro do mundo em Chancay, no Peru, e terá interesse em escoar pelo corredor a carga do agro para o porto peruano.

“A questão aqui é de soberania nacional, pois caso os chineses se interessem pelo corredor Fico-Fiol, eles terão a demanda, o porto e a ferrovia”, diz. Outro atrativo para o modal ferroviário, o acesso aos portos do Arco Norte, esbarra na potencial inviabilidade da Ferrogrão.

Para o especialista, o projeto enfrenta muita resistência. “Além da questão ambiental, tem contestação forte da Ferrogrão pelos povos originários lá em cima, em Miritituba, e oposição do setor rodoviário, que hoje transporta carga pela BR-163, com trajeto paralelo ao da ferrovia”, adverte.

Resende elogia os avanços obtidos na atual gestão. “A proposta de criar um fundo garantidor para atrair capital privado é boa”, diz ele, sobre o modelo de funding adotado. Mas tem dúvidas se o governo conseguirá cumprir a agenda de leilões ferroviários. “Acredito que, no máximo, cinco têm chances de sair”, prevê.

Segundo ele, levando-se em conta as ferrovias paradas que estão sendo revitalizadas, as autorizações, repactuações e novos projetos, há boa perspectiva de expansão do setor no médio prazo. “Estimamos cerca de 5 mil km de novas linhas até 2040, o que seria um grande avanço”, diz.

Luiz Baldez, presidente da Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga (Anut), também vê avanços, mas prefere manter a prudência quanto ao otimismo do governo.

“Projetos ferroviários são complexos e de longo prazo, mas defendemos uma análise cautelosa e realista, em vez de otimismo excessivo, pois os cronogramas são longos e repletos de incertezas”, adverte.

O leilão da Ferrogrão é um exemplo. “Esse projeto enfrenta grandes dificuldades: sendo ano eleitoral, a questão ambiental vai ganhar força e o processo de concessão é demorado, são pelo menos dois anos para a licitação e mais dez anos para a construção”, diz. “Isso projeta a conclusão para 2035-2037, possivelmente sob um novo governo com outra visão, tornando o projeto altamente incerto.”

O presidente da Anut também chama a atenção de como a falta de recursos e insegurança no modelo PPP são os principais entraves no setor ferroviário, dando o exemplo da EF-118. Ele afirma que o projeto dependeria do aporte de quase R$ 4 bilhões da Vale, que agora sinaliza que não fará mais a obra. A empresa, porém, já fez o aporte no fim do ano passado, mas o dinheiro entrou no caixa único da União.

"Sem esse recurso, o modelo de PPP para o projeto fica inviabilizado. Além disso, há uma insegurança fundamental sobre a disponibilidade do dinheiro público para o concessionário privado, um problema crônico que explica a ausência de PPPs federais no Brasil", questiona.

Baldez, por fim, faz uma avaliação cautelosa do novo modelo de funding do governo. Segundo ele, o modelo de concessão para obras inexistentes é bom na teoria, mas duvidoso na prática, devido à insegurança financeira para o investidor privado.

“O sucesso do modelo depende da garantia de que o aporte público estará disponível no momento certo, o investidor privado não comprometerá bilhões sem a certeza de que a contrapartida do governo será depositada”, adverte.

Baldez relata que sua associação propôs uma solução ao Legislativo - depósito do valor em conta vinculada na assinatura do contrato -, mas a ideia foi rechaçada. “Ou seja, isso mantém a incerteza que afasta investidores e torna o modelo arriscado.”