O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, chegou às eleições de meio de mandato, realizadas na terça-feira, 8 de novembro, com a corda no pescoço. Biden amargava popularidade em queda, de apenas 39%, o maior índice de inflação do país em 40 anos (de 8,2% ao ano) e, para completar, uma avaliação negativa da economia por parte dos americanos pior do que as captadas nas pesquisas durante a recessão de 2008.

Além da renovação das 435 cadeiras da Câmara dos Representantes e 35 dos 100 assentos do Senado, os americanos votaram para eleger um novo governador em 36 dos 50 estados. A previsão era de um massacre republicano nas urnas, como vinha prometendo o ex-presidente Donald Trump, ainda o principal líder da oposição. Com a esperada perda da atual maioria democrata da Câmara e do Senado, Biden corria o risco de passar os dois próximos anos vagando pela Casa Branca como um zumbi político.

Quando os resultados começaram a ser divulgados, veio a surpresa. Além de os republicanos terem obtido apenas uma pequena e decepcionante maioria na Câmara, os democratas conseguiram manter o controle do Senado, independentemente da definição da última cadeira - que só será conhecida em dezembro, quando vai ocorrer um segundo turno entre dois candidatos da Geórgia.

Não houve, portanto, o massacre republicano. Ao contrário, foi o melhor desempenho democrata numa eleição de meio de mandato com o presidente ocupando a Casa Branca em 60 anos. Com o resultado surpreendente, Biden, que vinha desconversando sobre seu futuro político, já admite tentar a reeleição.

“Se essa eleição teve um perdedor foi Donald Trump”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e da consultoria RB& Associados. “A perda da força do movimento trumpista foi o fato mais relevante da disputa, todos os principais candidatos de perfil radical e negacionista escolhidos por Trump para os governos estaduais e ao Senado foram derrotados.”

Há razões para essa reviravolta. A primeira delas é que, a despeito da inflação e da popularidade opaca de Biden, os americanos não votaram pelo bolso – como costuma ocorrer na maioria das eleições. Além disso, alguns indicadores econômicos positivos da economia dos EUA passaram ao largo das previsões que davam como certa uma derrota acachapante de Biden.

O Produto Interno Bruto (PIB) americano, por exemplo, cresceu 2,6% neste trimestre. O índice de desemprego é baixo para os padrões do Primeiro Mundo, de 3,7%, com um retorno rápido do país aos níveis de emprego pré-pandemia, contrastando com a lenta recuperação da crise financeira de 2008.

Por fim, o aumento dos preços – principalmente de alimentos e combustíveis, explorados à exaustão na campanha – corroeu o poder de compra, mas os salários também aumentaram, superando a inflação para os trabalhadores mais mal pagos desde que Biden chegou à Casa Branca.

Agenda de costumes

“O cenário político brasileiro ajuda a entender o que aconteceu nos Estados Unidos e vice-versa”, afirma o cientista político Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV NPII). “Os principais assuntos discutidos no segundo turno da eleição presidencial brasileira também não foram econômicos.”

Segundo ele, a agenda de costumes prevaleceu por lá também. “A questão do aborto nos Estados Unidos, em função da recente decisão da Suprema Corte – que revogou há pouco meses a histórica decisão do caso Roe vs Wade, de 1973, que havia garantido o direito ao aborto – polarizou a campanha, sobretudo entre as mulheres, tendo enorme relevância no processo”, afirma Paz.

O pesquisador da FGV cita ainda uma estratégia matadora do Partido Democrata para minar o trumpismo. “Durante as prévias locais do Partido Republicano, em alguns redutos estratégicos, os democratas injetaram dinheiro na campanha de alguns candidatos ultrarradicais alinhados com o Trump, que não representassem riscos aos candidatos democratas, caso chegassem à eleição”, diz Paz.

A explicação, segundo ele, é de que era melhor para os democratas disputar com um trumpista radical do que com um republicano moderado. “A estratégia deu certo: candidatos democratas venceram todas as disputas contra esses trumpistas que a legenda ajudou a vencer nas primárias republicanas”, acrescenta. “A avaliação é de que Trump não está tão forte assim.”

Paz também aponta outras razões econômicas que ajudaram Biden a conter uma vitória ampla republicana. Primeiro foi seu mérito de conseguir aprovar antes das eleições suas duas grandes propostas econômicas da campanha presidencial: a Lei de Emprego e Investimento em Infraestrutura (IIJA) – superpacote de US$ 1,2 trilhão de gastos em infraestrutura nos próximos cinco anos, ainda em 2021 – e a Lei de Redução da Inflação de 2022 (IRA na sigla em inglês).

“A inflação vinha alta, mas começou a cair um pouco por causa da aprovação da IRA, em agosto, que destina US$ 369 bilhões para transição e segurança energética”, diz Paz. Criada para combater as mudanças climáticas e a inflação, a legislação também busca reduzir o custo de medicamentos prescritos, aumentar os impostos sobre algumas corporações e diminuir o déficit econômico do país. O impacto no índice inflacionário é indireto e a médio prazo.

Mesmo com maioria na Câmara dos Representantes, os republicanos não podem descartar nenhuma parte da lei enquanto o presidente Joe Biden permanecer no cargo – qualquer tentativa enfrentaria um veto presidencial. O que os republicanos podem fazer é atrapalhar os trabalhos de implementação dos dois pacotes, convocando funcionários de agências governamentais para audiências.

Outro efeito é que a prometida blitz dos republicanos contra Biden – incluindo um pedido de impeachment do presidente, semelhante à ofensiva que os democratas fizeram contra Trump quando obtiveram maioria no Congresso nas eleições de meio de mandato de 2018 – não sairá do papel.

Trumpismo sem Trump

Apesar de ter sobrevivido politicamente ao resultado das urnas, Biden vai ter de lidar com a divisão do país, agora também no Congresso. “O futuro presidente republicano da Câmara dos Representantes, que vai substituir a democrata Nancy Pelosi, deverá dificultar aprovação de verbas de apoio à Ucrânia e de medidas contrárias à implementação da agenda ambiental de descarbonização da economia americana”, adverte o ex-embaixador Rubens Barbosa.

A vida tampouco promete ser mansa para Trump. À parte eventuais problemas enfrentados na Justiça, ainda por conta de irregularidades na Casa Branca – como a retirada de documentos secretos quando deixou o cargo, além de sua participação na invasão do Capitólio –, o ex-presidente americano ganhou um rival dentro do próprio partido: o governador reeleito da Flórida, Ron DeSantis.

Sua excelente votação, com 20 pontos percentuais de vantagem sobre o rival democrata Charlie Crist, o credencia a disputar contra o próprio Trump a candidatura republicana à Casa Branca em 2024. DeSantis também é ultraconservador, mas – diferentemente de Trump – atua dentro do sistema político.

“Com DeSantis candidato, a agenda radical de costumes – contra o sistema eleitoral e a favor da defesa do porte de armas, por exemplo – vai continuar forte e vocal”, assegura o ex-embaixador Rubens Barbosa. “Ou seja, o trumpismo radical, com ou sem Trump, veio para ficar.”