O presidente argentino Javier Milei já está recorrendo ao discurso libertário da campanha eleitoral como muleta para justificar os pontos fracos de seus dez meses de governo – no caso, a política cambial.
Milei apelou à narrativa usada na campanha ao ser questionado na quarta-feira, 9 de outubro, pelo jornal britânico Financial Times, quando pretendia suspender os controles cambiais. Em vigor desde 2019, a medida é essencial para cumprir sua promessa eleitoral – rapidamente deixada de lado após a posse – de dolarizar a economia.
“Não somos comunistas, somos libertários”, disse Milei ao FT, acrescentando que não estava “pronto” para suspender os controles cambiais do país. “Há uma questão filosófica por trás disso, que é a de que não posso definir datas porque não penso como um planejador central; pensamos em termos de um regime de liberdade”, desconversou.
Ao invocar os argumentos libertários, o presidente argentino apenas expôs as dificuldades de seu governo em evitar, de um lado, a desvalorização do peso e, de outro, o aumento das reservas internacionais – estimadas em apenas US$ 21,7 bilhões.
Os controles cambiais, impostos há cinco anos em meio a uma crise econômica, fixam o peso a uma taxa oficial e limitam as compras individuais e empresariais de moeda estrangeira, estimulando o câmbio paralelo e dissuadindo o investimento estrangeiro.
Logo após a posse, Milei desvalorizou o peso em mais de 50% e pôs fim ao tabelamento de preços de vários produtos essenciais, indicando que os efeitos de sua política fiscal possibilitariam levantar os controles cambiais até o fim do ano.
Seu governo de fato colheu resultados: equilibrou o orçamento, pondo fim a anos de déficits financiados pela impressão de dinheiro pelo banco central, reduziu a inflação mensal de 26% em dezembro para 4,2% em agosto e, no primeiro semestre do ano, ainda comemorou o primeiro superávit fiscal do país desde 2008.
Mas a suspensão de subsídios de luz, água e transporte, entre outros itens, pressionou o custo de vida dos argentinos, atrapalhando a estratégia do governo de adotar um regime cambial com ajustes mensais controlados e graduais na taxa oficial, na faixa de 2%, conhecido no mercado financeiro como crawling peg.
O objetivo era permitir a retomada do crescimento do país sem que os preços subissem de forma exponencial, o que não ocorreu – a inflação nos últimos 12 meses foi de 237%, com a economia encolhendo nos dois primeiros trimestres do ano (2,2% e 1,7%). A previsão é que o PIB argentino feche o ano com contração de 3,5%.
Os exportadores argentinos, em especial, reclamam que quase todos os ganhos de competitividade decorrentes da desvalorização de dezembro foram agora eliminados.
Na entrevista, Milei alegou que o excesso de pesos impressos no último ano de mandato de seu antecessor, Alberto Fernandéz, para financiar gastos do governo - equivalente a 13% do PIB - vai exigir mais tempo para sua gestão levantar os controles cambiais.
O presidente argentino impôs três condições, todas difíceis de serem cumpridas no curto prazo, para suspender os controles: queda na inflação mensal para menos de 2,5%, em comparação com os 4,2% de agosto; a venda, por parte dos bancos nacionais, da sua extensa participação em títulos do governo argentino de curto prazo para financiar mais empréstimos às empresas; e aumento de reservas internacionais do país, hoje em apenas US$ 27 bilhões.
“Já começamos a levantar algumas das regulamentações que compõem os controles”, assegurou Milei. “E estamos fazendo tudo isso sozinhos”, acrescentou, negando que a eliminação dos controles de capital dependa de um acordo com o FMI.
O ministro da Economia, Luis Caputo, também presente na entrevista, rapidamente aproveitou a deixa, afirmando que um novo acordo com o FMI, incluindo dinheiro novo para aumentar as reservas argentinas, “ajudaria a levantar os controles cambiais”.
Dolarização sem dólar
Como opção para suspender os controles cambiais, o governo argentino vem atuando em duas frentes. Uma delas é estimulando uma espécie de “dolarização sem dólar”, com redução da oferta de pesos. Na prática, o objetivo é forçar os argentinos a usarem os dólares que guardam sob o colchão para pagar as despesas cotidianas, aumentando a quantidade de dólares em circulação.
Indústria, comércio e até fintechs anunciaram medidas para estimular a dolarização dos negócios. O temor é de que o processo cause um efeito colateral – aumento da inflação. Uma rede de supermercados varejista-atacadista, Diarco, por exemplo, passou a aceitar pagamentos em dólares, mas a uma taxa 40% mais alta do que a do câmbio oficial.
Outra frente, também para que os argentinos usem os dólares guardados sob o colchão, foi estimular uma anistia fiscal para quem depositar até US$ 100 mil em espécie nos bancos, programa que se encerra no final do mês. Até o mês passado, os depósitos em dólares aumentaram 40%, totalizando US$ 19,8 bilhões.
Para o economista Nicolás Alonzo, analista-chefe da consultoria Orlando Ferreres e Asociados, de Buenos Aires, ainda há muitas questões pendentes sobre a política cambial do governo.
Segundo ele, a valorização do câmbio é maior do que sugerem as condições atuais da economia, mesmo se comparada com outros planos de sucesso onde a âncora cambial foi um eixo central. Alonzo cita a balança corrente, referentes a operações de importação e exportação, como ponto de atenção.
“O déficit da balança corrente começa a aparecer e no próximo ano não haverá tantos dólares comerciais”, adverte. Quanto aos possíveis efeitos da anistia fiscal, Alonzo tem dúvidas: “Não está claro como essa iniciativa melhoraria as reservas líquidas do banco central argentino.”