Maior surpresa no cenário político argentino dos últimos anos, o candidato à presidência Javier Milei começou a chamar a atenção no início da campanha eleitoral não só pela cabeleira despenteada, jaqueta de couro e estilo exibicionista. Mas por se apresentar como um “anarcocapitalista”, uma expressão estranha por agregar temas divergentes, como anarquismo e capitalismo.

Não causou surpresa que Milei tenha subido nas pesquisas pelas propostas econômicas consideradas exóticas num país de forte tradição estatista, marca principal do peronismo – o movimento político e social majoritário no país, fundado pelo caudilho Juan Domingo Perón (1895-1974).

Com uma motosserra na mão, Milei prometeu dolarizar a economia, cortar ministérios, “dinamitar” o Banco Central, privatizar estatais e acabar com subsídios. Na essência, se possível, reduzir  a zero a presença do Estado numa economia à beira do precipício, com inflação a 140% ao ano e sem reservas em dólares.

Num país acostumado a reduzir as divergências econômicas entre peronistas (pró-Estado) e liberais (pró-mercado), Milei aos poucos foi introduzindo em seu discurso algumas ideias por trás do anarcocapitalismo, também chamado de capitalismo libertário ou simplesmente Ancap.

A rigor, trata-se uma filosofia política que defende o direito à soberania do indivíduo e a plena vigência do capitalismo, tudo isso sem a regulação do Estado.

Como coloca a liberdade individual e o direito à vida como valores supremos – incluindo o direito inviolável de fazer o que quiser com o seu corpo e bens –, o anarcocapitalismo é considerado um movimento libertário. Isso explica algumas das posições aparentemente contraditórias de Milei, como ser contra o aborto e a favor que qualquer cidadão possa vender seus órgãos.

No plano econômico, o anarcocapitalismo vai além da ideia de Estado mínimo do neoliberalismo, propondo a dissolução do Estado e a privatização de todos os serviços – algo que nunca foi implementado na história do capitalismo.

Em seus discursos, Milei fala até em passar a gestão de educação e saúde para a iniciativa privada e privatizar “até as ruas, que exalam socialismo”. Ao ser questionado sobre o “penteado estranho” que adota, Milei disse que simplesmente abre a janela do carro e deixa "a mão invisível do mercado” pentear seus cabelos.

Outra obsessão, a cobrança de impostos, reflete esse radicalismo ultraliberal. Repetindo o mantra dos capitalistas libertários de que cobrar tributos é uma agressão, Milei vive repetindo que “imposto é roubo” e sonegar, “uma legítima defesa”.

Anarquismo às avessas

Apesar da menção na expressão anarcocapitalismo, o movimento anarquista é anticapitalista e de esquerda. O anarcocapitalismo, por sua vez, é uma ideologia de direita, pautada pelo individualismo e pelo livre mercado. O único ponto em comum entre essas duas ideologias é o antiestatismo.

“É importante notar que o anarcocapitalismo não é uma corrente de pensamento econômico, e sim uma forma de combinar conceitos do pensamento anarquista, uma filosofia política, com políticas econômicas consideradas libertárias”, afirma Thales Zamberlan, professor de História do Pensamento Econômico da Fundação Getúlio Vargas (EES-FGV).

O princípio básico, segundo Zamberlan, é que uma economia capitalista funcionará adequadamente sem as distorções criadas pelo Estado. “No caso da Argentina, a questão dos subsídios é um exemplo evidente, mas você não precisa do pensamento anarcocapitalista para entender que subsídios geram aumento do gasto do governo e inflação”, diz o acadêmico.

Economista de formação e professor de macroeconomia, Milei afirma ter aderido aos princípios do anarcocapitalismo em 2013, depois de ler um artigo do economista norte-americano Murray Newton Rothbard (1926-1995), um dos expoentes da Escola Austríaca de Economia - que, na segunda metade do século XX, procurou revitalizar os princípios liberais anteriores ao liberalismo clássico de Adam Smith.

Rothbard é uma festejada referência da extrema direita americana ligada a Donald Trump, pois sempre defendeu que os libertários deveriam promover o populismo de direita como estratégia política. Suas ideias foram abraçadas fora dos Estados Unidos pelo partido de extrema-direita espanhol Vox, por políticos como José Antonio Kast no Chile e pelo bolsonarismo no Brasil.

Milei utlizou a receita populista na campanha, batendo na tecla da desilusão tanto com o peronismo do candidato do governo, Sergio Massa, quanto com a centro-direita, ligada à candidata Patrícia Bullrich.

A rejeição do "politicamente correto", a denúncia da "casta" política, a reivindicação da "liberdade" – recursos oratórios típicos da extrema direita, inclusive bolsonarista – reforçaram sua mensagem “contra tudo o que está ai”.

Apesar de estimular uma vertente populista libertária, Rothbard tinha como referência dois economistas da Escola Austríaca, Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992), mais respeitados nos círculos de direita.

“No debate sobre economia, provavelmente as políticas defendidas pelo Instituto Ludwig von Mises serão as mais próximas do anarcocapitalismo, apesar de serem ideias marginais dentro da economia”, diz Zamberlan, da FGV. “O prêmio Nobel Paul Samuelson, aliás, escreveu certa vez que as ideias de Mises eram prejudiciais para a reputação da disciplina.”

Outro acadêmico ligado ao anarcocapitalismo é o economista David Friedman. Filho do economista Milton Friedman (1912-2006), lendário professor da Universidade de Chicago e um dos economistas mais influentes do século 20, David defende que o fim do estado implicaria em inúmeras vantagens econômicas para a sociedade.

Muleta

Para Nelson Marconi, coordenador do Fórum de Economia da Fundação Getúlio Vargas da São Paulo e professor visitante da Universidade Harvard, Milei usa a referência ao anarcocapitalismo na campanha como uma muleta para reforçar seu discurso.

Segundo ele, os dois candidatos com quem Milei disputou o primeiro turno estiveram no poder - Massa no governo atual e Bullrich como aliada do ex-presidente Mauricio Macri, que é pro-mercado - e falharam.

“O que ele diz é que para resolver os problemas tem de dolarizar a economia e fechar o banco central e, para justificar essa medida, busca apoio no anarcocapitalismo”, afirma, lembrando que as ideias da escola austríaca surgiram em outro contexto da economia mundial.

“O papel do Estado era diferente, voltado para expandir fronteiras e conquistas de mercado à força, diferente da complexidade de hoje na relação do Estado com a sociedade”, diz. Segundo ele, como a receita neoliberal introduzida no governo Macri não trouxe empregos, Milei aparece com outra ideia.

“O pior é que o ultraliberalismo tende a crescer, mas nem em outros países onde está em ascensão, como na Suíça, se fala em abrir mão da moeda ou do banco central” diz Marconi.