A Argentina vive um período de incerteza política e econômica desde o primeiro semestre deste ano, quando a inflação chegou a três dígitos, e que se agravou com a perda da safra de grãos por conta da seca (com prejuízo equivalente a 3% do PIB). Pior: deve sofrer novos sobressaltos em outubro e novembro, quando serão realizados os dois turnos da eleição presidencial.

Não bastasse a crise econômica que mantém 40% da população na pobreza e a inflação anual em 113%, a perspectiva de vitória do deputado ultradireitista Javier Milei, que saiu vencedor nas eleições primárias no último dia 13 de agosto, obtendo pouco mais de 29% dos votos, acendeu um sinal de alerta e o temor de que tudo pode piorar.

Desde então, o país entrou num transe que mistura desamparo, violência e uma enorme interrogação em relação ao futuro. Milei teve uma ascensão meteórica com sua proposta de dolarizar a economia argentina, literalmente implodir o prédio do Banco Central do país e de adotar uma agenda ultraliberal que inclui até a permissão aos argentinos para a venda de órgãos humanos.

O drama argentino ganhou peso porque todas as saídas possíveis para reverter a crise econômica já foram tentadas antes, com sucesso limitado no curto prazo – incluindo a dolarização prometida por Milei, que causa arrepios nos economistas argentinos mais experientes e empolga os jovens, que não vivenciaram os efeitos da Lei de Convertibilidade, de 1991.

Experiência mais próxima de uma dolarização para enfrentar a hiperinflação, a medida conduzida pelo então ministro Domingo Cavallo estabeleceu a paridade fixa do peso argentino com o dólar norte-americano. Mas teve efeito de alcance limitado, trazendo de volta inflação.

O próprio candidato parece ter percebido que a proposta de adotar o dólar como moeda oficial, que cada vez mais se aproxima de um golpe de marketing político para ganhar votos do que de um plano estruturado de recuperação econômica, deve passar por uma revisão.

Nesta terça-feira, 5 de setembro, um dos seus principais conselheiros econômicos, Darío Epstein, afirmou que o candidato ultradireitista tem um "plano de dolarização muito específico", mas reconheceu que terá dificuldade de colocá-lo em prática.

“Sejamos claros: Javier tem uma proposta de dolarização muito específica, tão concreta que não vamos dolarizar se não houver dólares”, afirmou o assessor. “O mais importante é que não poderá haver déficit fiscal.”

A menção à falta de dólares não é retórica. Apesar de o Banco Central ter informado que a Argentina tem reservas internacionais de US$ 25,646 bilhões, o mercado estima que as reservas na verdade são negativas.

Cálculos anteriores estimavam ser necessários pelo menos US$ 35 bilhões para dar início a um processo de dolarização, que seguramente seria precedido de um violento ajuste fiscal que deve causar um empobrecimento ainda maior da população.

“A piada que circula no mercado é que o candidato passou a ser chamado de ‘Javier Delay’, porque deverá postergar a dolarização caso seja eleito”, afirma o economista Alberto Ramos, diretor do grupo de pesquisa macroeconômica para América Latina do banco Goldman Sachs.

Segundo ele, a situação econômica é tão dramática que os argentinos precisam levar em conta que dolarização é diferente de plano de ajuste fiscal. “Se ele for eleito e fizer um plano de estabilização muito bem-feito, talvez nem precise fazer a dolarização”, afirma Ramos.

Dívida com FMI

Falar em dolarização, por sinal, soa estranho ao país que mais deve ao Fundo Monetário Internacional (FMI). No fim do mês passado, o FMI aprovou um desembolso de US$ 7,5 bilhões de seu atual acordo de empréstimo, de US$ 44 bilhões, apesar do fracasso da Argentina em cumprir as principais metas, para evitar que o país entre em moratória antes das eleições.

Outro aspecto lembrado pelo economista do Goldman Sachs é o equilíbrio entre os três candidatos à Presidência. Além de Milei, que obteve 29,86% dos votos nas prévias, a candidata Patricia Bullrich, apoiada pelo ex-presidente Mauricio Macri, de centro-direita, obteve 28% dos votos.

O atual ministro da Economia, o peronista Sergio Massa, recebeu 27,28% dos votos. “É inacreditável que Massa, que comandou uma gestão desastrosa na economia, tenha menos de 2 pontos percentuais de diferença para Milei”, observa Ramos.

O fato de Milei se apresentar como um defensor radical do livre mercado tampouco empolga o setor empresarial, cansado das políticas populistas e de afrouxamento fiscal do atual governo peronista.

“Javier Milei não é a causa e sim o sintoma da atual crise econômica e política argentina”, afirma Gino Olivares, economista-chefe da Azimut Brasil Wealth Management e professor do Insper. “Ele é o azarão, o outsider da política, mas conforme aumentam as chances de vitória, ele vai ter de moderar o discurso, correndo o risco de perder votos.”

Para Olivares, caso Milei vença terá apenas duas opções de ação: um choque econômico radical para fazer o ajuste fiscal, “à vista”, ou adotar outro choque “parcelado”, aos poucos, o que vai exigir crédito dos argentinos.

“O que Milei pretende fazer, como a dolarização, não terá apoio no Congresso Nacional, historicamente os governos não peronistas são fracos politicamente”, diz o economista da Azimut.

Ressaca pós-prévias

Há, por fim, o contexto em que se encontra a política e a economia do país após as prévias, há pouco mais de duas semanas: uma ressaca que tem revirado o estômago dos argentinos.

No dia seguinte às prévias, o governo argentino desvalorizou o peso em 18%, elevando para acima de 100% a diferença entre o preço oficial do dólar e o do mercado paralelo. Além disso, o BC argentino impôs uma subida recorde nas taxas de juros de 20 pontos, até 118%, imediatamente repassada pelas empresas aos preços dos produtos.

O resultado desse turbilhão de más notícias foi uma onda de 150 saques que varreu o país logo na sequência, atingindo cidades de sete províncias (estados), além da capital federal.

O grau de revolta foi tão grande que o governo argentino oficializou na semana passada o pagamento de subsídio aos comerciantes e empresários afetados pelos saques ocorridos na semana anterior, num montante que pode chegar a até 7 milhões de pesos (cerca de R$ 97,5 mil) a cada negócio destruído.

O mercado dá cada mais mostras que as alternativas eleitorais são estreitas. Desde o início do governo do presidente Alberto Fernández - que simplesmente desistiu de tentar a reeleição -, mais de 25 multinacionais abandonaram o país.

“A situação econômica há muito já passou do ponto que dava para manejar o ajuste fiscal”, diz Ramos, do Goldman Sachs. “Seja qual for o candidato vencedor, terá pouco espaço de manobra.”