Após um ano de governo, o presidente da Argentina, Javier Milei, conseguiu uma proeza jamais vista em tão pouco tempo no conturbado cenário econômico da América Latina – um ajuste fiscal equivalente a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, com corte de 35% dos gastos do governo, incluindo todos os subsídios.

O pacotaço ajudou a derrubar a inflação mensal de 25,5% no final de 2023 para 2,7% em dezembro e transformou décadas de déficit fiscal em superávit. Tudo isso sem aumento de impostos, com minoria no Congresso e em meio a dois anos de recessão.

Para Alberto Ramos, diretor do grupo de pesquisa macroeconômica para América Latina do banco Goldman Sachs – que nasceu em Moçambique e vive nos Estados Unidos, mas há anos acompanha de perto as reviravoltas da economia argentina e também da brasileira -, só mesmo um político com o perfil de Milei, um economista extravagante, com suas ideias libertárias, conseguiria pôr fim ao longo ciclo de desequilíbrio econômico do país vizinho.

“Para um político argentino dizer que vai consertar o país e cumprir a promessa, não pode ser uma pessoa normal”, afirma Ramos, com bom humor e ironia, nesta entrevista ao NeoFeed.

Segundo ele, o mérito de Milei foi cumprir à risca o que prometeu em campanha, avisando que o ajuste seria duríssimo, mas na frente os resultados compensariam. Nesta “travessia do deserto”, como definiu, os argentinos de fato estão pagando um preço elevado: queda de 3,5% do PIB em 2024 e aumento de preços de dois a três dígitos nos serviços públicos, o que elevou o índice de pobreza para 53% da população.

A manutenção do índice de popularidade de Milei de 47%, porém, é uma prova de que os argentinos assimilaram sua proposta: “O pior do ajuste já passou, o crescimento está voltando com força e a Argentina vai evoluir de pior economia em 2024 para a que mais deve crescer em 2025 na América Latina.”

Apesar de a economia brasileira se encontrar num patamar nitidamente superior, o economista afirma que o ajuste da Argentina serve de exemplo para o Brasil, às voltas com déficit fiscal, câmbio desvalorizado e com inflação e dívida pública em ascensão.

Para Ramos, o governo tem uma visão errada do mercado e insiste com uma política fiscal distorcida. Ele adverte que o crescimento do PIB de 3,5% é fruto do forte injeção de gasto público, o que alimenta a inflação e eleva a dívida pública. Esse crescimento, segundo ele, é insustentável.

“Se no ano bom a dívida pública aumenta de 2% a 3%, imagina num ano ruim”, adverte.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista de Alberto Ramos, divididos em tópicos:

O governo Milei
"Milei surpreendeu. Ele tinha o diagnóstico certo do que tinha empobrecido a Argentina e qual era o caminho para sair desse atoleiro: era basicamente fazer o ajuste fiscal junto com uma reforma estrutural baseada em corte de despesa, não em aumento da carga tributária, pois assim reduziria a necessidade de emissão monetária para financiar o déficit. Ao mesmo tempo, implementou uma agenda bastante agressiva de desregulamentação e adotou microrreformas para aumentar a produtividade e eficiência da economia. Ou seja, entregou o ajuste fiscal mais profundo e mais rápido do que se esperava – isso tudo apesar de ter uma representação muito limitada no Congresso, demonstrando ter também habilidade política."

A reforma econômica da Argentina
"O novo Ministério da Desregulação e Transformação, criado em julho e liderado por Federico Sturzenegger, ex-presidente do Banco Central no governo de Mauricio Macri (2015-2019), está avançando rápido nessa agenda de desregulamentação e de microrreformas. Sturzenegger chegou a entregar uma proposta de lei que tinha 600 páginas, detalhando como eliminar todo tipo de regulação que se foi acumulando durante décadas e não fazia sentido, de coisa pequena a questões graúdas, como acabar com uma licença para transportar gás entre províncias. Livrar-se desse tipo de regulação ajuda a tornar a economia mais flexível e eficiente. Não há paralelo de esforço tão grande, tão concentrado e tão profundo de eliminar regulação e realizar reformas micro como essas."

alberto ramos goldman sachs
Alberto Ramos, do Goldman Sachs

Fórmula de Milei
"Acompanho de perto a Argentina há mais de 20 anos e posso dizer que, para um político argentino dizer que vai consertar o país e cumprir a promessa, não pode ser uma pessoa normal. Milei tem esse perfil, com suas peculiaridades. Basicamente, ele prometeu, tal como o ex-primeiro-ministro inglês Winston Churchill (1874-1965) na Segunda Guerra, ‘sangue, suor e lágrimas’.

O pacote de reforma fiscal e estrutural argentino foi o mais abrangente feito na América Latina nos últimos anos - o que mais tivemos na região nesse período foram contrarreformas. Fazer um ajuste fiscal equivalente a 4% ou 5% do PIB, com a economia contraindo após dois anos de recessão, não é fácil. Basta comparar com o pacote fiscal anunciado pelo governo brasileiro, com pouquíssimas medidas do lado do gasto.

Milei fez de fato um arrocho muito apertado na economia e no mercado de trabalho, mas a popularidade dele se manteve porque ele conseguiu vender uma visão de país, no sentido de ‘isso vai ser muito difícil, mas vamos chegar a um lugar bem melhor’. Após essa travessia do deserto, os argentinos estão começando a ver esses dividendos do ajuste. Acredito que caiu a ficha para eles – Milei mostrou que era preciso mudar de rumo completamente, que não era uma questão de pequenos ajustes, era uma questão de mudar completamente a filosofia econômica."

"O pacote de reforma fiscal e estrutural argentino foi o mais abrangente feito na América Latina nos últimos anos"

Continuidade das reformas
"O primeiro ponto é perseverar no controle fiscal, mas isso parece que ele está mais convicto do que ninguém - Milei não faz nenhuma negociação política em cima da política fiscal. A parte incompleta da agenda é a parte monetária e financeira: os controles de capital, pois o câmbio ainda está muito amarrado. Milei acha que ainda é perigoso soltar o câmbio num contexto em que as reservas do Banco Central ainda são limitadas.

Acho que ele poderia ter avançado um pouquinho mais, mas entendo o risco, inclusive político – ele prefere esperar as eleições parlamentares de outubro, na qual espera aumentar a representação no Congresso de seu partido, o Libertário, e sair da eleição com uma musculatura política mais elevada, talvez até com um acordo político com o PRO, partido do Macri. Se isso acontecer, então ele pode pensar em reformas mais profundas, num processo gradual de desmantelar os controles de capital e evoluir para um sistema de câmbio mais flexível. Essa é a parte do ajuste que ainda está meio capenga."

Perspectivas da economia argentina para 2025
"Do ponto de vista do ajuste macroeconômico, acredito que o pior já passou. A inflação baixou e essa talvez seja uma das razões principais para que a popularidade Milei tenha se mantido resiliente. O crescimento está voltando com força, a ponto de se prever um avanço do PIB de 4% ou 5% para 2025, com inflação baixa e controlada, salário real crescendo e mercado de trabalho melhorando. Ou seja, a Argentina vai evoluir de pior economia em 2024 para a que mais deve crescer em 2025 no contexto da América Latina."

Lições das reformas de Milei para o Brasil
"Acredito que o ajuste fiscal da Argentina serve de exemplo para o Brasil e também para outros países do mundo. Milei fez basicamente o que a literatura tem identificado como ajustes fiscais de sucesso, baseados no corte do gasto, não no aumento da carga tributária, acompanhado de uma agenda de desregulamentação e liberalizante do ponto de vista micro. A economia argentina chegou a uma inflação muito alta, com perda de credibilidade pelo descontrole fiscal acumulado durante muitos anos. É um sinal de alerta para o Brasil."

Diferenças, hoje, entre as duas economias
"Há uma diferença estrutural muito importante, que favorece o Brasil, que tem um mercado de capitais muito profundo. Apesar de o déficit fiscal do Brasil ser mais de 9% do PIB, o País consegue satisfazer as suas necessidades de financiamento no mercado local, embora não significa que isso seja neutro para a economia, com implicações para juro real e outras coisas.

A Argentina não tem o mercado de capitais local com essa profundidade. Com isso, está sempre dependendo das ‘bondades’ de estrangeiros - quando tem um déficit elevado, ou se financia com emissão monetária, gerando grandes pressões da inflação, ou se financia em dólares no mercado exterior ou junto ao FMI, o que agrava a crise da dívida.

O principal desequilíbrio macroeconômico do Brasil é, sem dúvida, o déficit fiscal e a dívida pública, porque para estabilizar a dívida, o País necessitaria de um superávit primário de 2% a 2,5% do PIB. Em 2024, o PIB do Brasil cresceu 3,5%, o desemprego atingiu baixa histórica e a inflação cresceu um pouco, chegando a 4,8%. O problema do contexto com inflação mais elevada é que a dívida pública continua a aumentar. Se no ano bom da economia a dívida pública ainda aumenta de 2% a 3%, imagina num ano ruim."

“Se no ano bom da economia a dívida pública aumenta 3%, imagina num ano ruim”

O pacote fiscal brasileiro na ótica do estrangeiro
"A visão do investidor estrangeiro em relação ao País piorou. O quadro fiscal já estava negativo há algum tempo. É muita volatilidade e tempo gasto para acompanhar as notícias do País, o que o Haddad falou, etc., os gringos foram ficando desinteressados. Com o anúncio do pacote, teve muita gente jogando a toalha e desistindo de fazer investimento no Brasil. Não é para sempre – quando se tem equities nos EUA indo bem e poder comprar títulos do Tesouro a 4,3% de retorno, dá para dormir sossegado. O sentimento, primeiro, era de pouco interesse em relação ao Brasil, depois ficou bastante negativo e, agora, está desengajado. Acho que essa é a melhor caracterização do segmento hoje."

O embate governo e mercado financeiro
"Há um erro conceitual do governo, que acha que nada que faça vai agradar o mercado e não entende a reação histérica após o pacote. Primeiro, não sei quem é esse “mercado” – apesar de trabalhar há mais de 20 anos no setor, nunca o encontrei e tampouco sei seu telefone ou e-mail. O que sei é que os preços de mercado, inclusive o câmbio, resultam de bilhões de transações durante o dia, algo que se cristaliza num preço. Quando a economia vai bem, com crescimento sustentável, inflação baixa, inclusão e paz social, é ótimo para o mercado. O mercado nunca conspira contra ninguém: é como uma agência de rating, avalia a política macro e, se vai pelo mau caminho, tem de se ajustar ou o investidor vai procurar outro local para aportar capital. Não é uma questão de preferência política."

A sustentabilidade do PIB do Brasil
"A discussão no Brasil hoje sobre a política fiscal ainda está completamente fora de contexto. O governo promete cumprir a meta de inflação, mas essa meta sequer é zero. Aquele zero do arcabouço, da maneira como o Banco Central pede, incluindo todas as exceções à regra, ainda é um déficit primário – e a meta de 2025 e de 2026 não estabiliza a dívida pública, que continuará subindo. Ou seja, a meta é pouco ambiciosa e joga o problema para 2027 e 2028.

Há um outro argumento que é, do ponto de vista cíclico, de curto prazo: a economia sobreaqueceu, está forte demais para esse crescimento ser sustentável, houve uma injeção de gasto muito elevada nos últimos dois anos. Isso começou a levar a pressões de inflação de serviços e fez o Banco Central inverter a marcha do corte de juros. Dinamicamente, o Brasil não pode ter outro ano de crescimento de 3% do PIB e com inflação a 5%. Como a economia está sobreaquecida, com um equilíbrio altamente instável, o mercado, por experiência própria, sabe que esta trajetória não termina bem. Se nada for feito, a próxima iteração desse processo é crescimento do PIB abaixo de 2%, inflação acima de 6% e câmbio a R$ 7."