O polêmico presidente da Argentina, Javier Milei, vive uma situação curiosa. Após nove meses no cargo, tomou medidas duríssimas para reorganizar a economia argentina e conseguiu resultados positivos.

Um deles foi a redução da inflação – que saiu de 25,2% em dezembro, quando tomou posse, para uma faixa mensal de 4% desde maio. No primeiro semestre do ano, ainda comemorou o primeiro superávit fiscal do país desde 2008, entre outras boas notícias.

Se as contas públicas melhoraram, o custo social foi altíssimo. O corte de 41% dos subsídios de energia, decisivo para o superávit fiscal do governo, levou, em contrapartida, a um aumento das tarifas de energia elétrica (em termos reais, de 55% em média) e de gás (177%) que penalizaram a população – o que explica o fato de 52% dos argentinos estarem na linha da pobreza, com 12% sobrevivendo na indigência.

Se a percepção “o governo vai bem, mas os argentinos vão mal” se encaixa no momento atual do país, a dúvida é até quando Milei conseguirá avançar em medidas saneadoras na economia sem causar uma crise social incontrolável.

“Qualquer outro governo não teria condições de subsistir sob a situação atual da Argentina, mas Milei tem a seu favor uma combinação da lembrança do péssimo passado recente do país com a desarticulação completa das oposições”, afirma o economista Fabio Giambiagi, pesquisador do FGV/Ibre e profundo conhecedor do país vizinho.

Essa combinação, de acordo com o economista, permite a Milei “jogar parado” – ou seja, seguir com sua agenda agressiva com risco mais baixo de rejeição. De um lado, o argentino comum, mesmo impactado com o choque dos ajustes, percebe ao menos uma pausa no aumento descontrolado da inflação.

Por outro, os escândalos e erros da oposição ajudam a tirar o foco das medidas impopulares do governo. Giambiagi cita como exemplo a saga envolvendo o ex-presidente Alberto Fernandéz, que após deixar o cargo foi acusado de violência doméstica pela ex-esposa e, na sequência, de levar mulheres para fazer orgias quando vivia na residência oficial de Olivos.

Além disso, uma denúncia de corrupção envolvendo uma assessora de Fernandéz tirou a aura de incorruptível do ex-presidente argentino e acabou atingindo a ex-presidente Cristina Kirchner, que havia bancado a eleição de Fernandéz para a Casa Rosada.

“Depois dos escândalos, Kirchner passou a ser duramente cobrada pelos peronistas”, diz Giambiagi, cintando ainda o esfacelamento da União Cívica Radical, partido de oposição centrista, e a hesitação de Mauricio Macri, líder de centro-direita, em apoiar Milei ou enfrentá-lo na próxima eleição.

Tudo isso ajudou o presidente argentino, levando apoiadores e críticos a recorrerem à imagem do copo meio cheio ou meio vazio para julgar seu governo.

Milei jamais escondeu suas prioridades ao assumir o cargo, em dezembro: atacar a inflação de dois dígitos de anos, zerar o déficit fiscal do governo, cortando subsídios e outros gastos, aumentar as reservas internacionais em dólares e retomar o crescimento da economia.

Em termos concretos, agiu neste sentido. Milei reduziu de forma intensa gastos com Previdência Social e funcionalismo, cortou subsídios, eliminou transferências não-obrigatórias para as províncias (estados) e passou a tesoura nos investimentos públicos – corte de cerca de 85% em termos reais no primeiro semestre de 2024 em comparação ao mesmo período do ano anterior.

Os avanços, porém, não mascararam os seus efeitos: a inflação, mesmo em queda, ainda está na faixa de 230% ao ano, e o PIB deve fechar 2024 com crescimento negativo de 3,8%.

A rigor, Milei governa equilibrando os pratos. Em maio, a economia argentina surpreendeu ao registrar um crescimento anual de 2,3%, após seis meses consecutivos de quedas na atividade econômica A alta foi puxada pelo segmento agrícola e pecuário. Mas o setor de construção, por exemplo, despencou 24% na comparação anual, enquanto a atividade industrial caiu 20%.

Próximos passos

Para Giambiagi, Milei deve tirar proveito dessa visão do copo argentino meio cheio para seguir com suas reformas. Entre as prioridades está um novo acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), pois a Argentina está precisando de dinheiro novo.

Ainda pendente do empréstimo anterior de US$ 44 bilhões – pelo qual paga apenas os juros, sem quitar o principal -, Milei pretende reivindicar mais US$ 15 bilhões, elevando a dívida principal para US$ 60 bilhões. Em maio, ele já havia obtido um empréstimo de US$ 800 milhões do FMI.

“Milei deve ressionar por ter obtido os melhores resultados fiscais das últimas décadas usando a cartilha do FMI para causar um constrangimento no Fundo e obter ao menos uma parcela desses US$ 15 bilhões até o final do ano”, diz Giambiagi.

Outra arma é a anistia fiscal que o governo está oferecendo para atrair os cerca de US$ 258 bilhões que os argentinos mantêm fora do seu sistema financeiro, em colchões ou no exterior. A ideia seria legalizar esse influxo de dólares para revigorar a economia e aumentar as baixíssimas reservas internacionais, de pouco mais de US$ 20 bilhões.

O FMI estima que o programa possa atrair de volta cerca de US$ 40 bilhões, rendendo ao Tesouro argentina US$ 1,5 bilhão em impostos. A medida poderia ajudar a melhorar o que Giambiagi considera o calcanhar de aquiles do governo Milei – a taxa de câmbio. Houve uma desvalorização de 11% do peso argentino no primeiro semestre, alimentada pela inflação.

Para o economista, Milei deve seguir trabalhando com a perspectiva de reduzir a inflação para 60% ao ano e com a economia crescendo em 4% até o final de 2025, quando haverá eleição para renovar o Congresso.

“Seu objetivo certamente é aumentar sua base no Congresso com o argumento de que salvou a economia da Argentina”, diz Giambiagi. Ou seja, tentar reverter a visão do copo meio vazio de parte dos argentinos para o de meio cheio e, com isso, pavimentar caminho para a reeleição em 2027.