Durou pouco a resistência do presidente argentino, Javier Milei, em negociar com a oposição moderada no Congresso Nacional alguns pontos do projeto de lei conhecido como Lei Ônibus, um pacotaço com 664 artigos distribuídos em 183 páginas, anunciado no começo de janeiro.

Um dia depois de voltar de Davos, na Suíça, onde fez um discurso agressivo endereçado à elite econômica presente ao Fórum Econômico Mundial, no qual atacou o socialismo, o feminismo e a agenda ambiental, o presidente argentino acabou se curvando à realidade e fez várias concessões para acelerar a aprovação da Lei Ônibus.

A mudança de estratégia dá uma ideia de como Milei se viu isolado com apenas 40 dias no cargo. Por meio de interlocutores, autorizou mudanças em mais de 100 artigos da lei, que vieram a público nesta sexta-feira, 19 de janeiro.

A julgar pelas concessões, pode-se afirmar que Milei cortou na própria carne, rasgando parte de sua cartilha ultraliberal.

Entre as mudanças sugeridas na Lei Ônibus, o presidente argentino abriu mão de parte dos poderes especiais que havia delegado a si próprio, aceitou dar reajustes aos aposentados corrigidos pela inflação e não só desistiu de privatizar a estatal  de petróleo YPF como ainda delegou ao Congresso a palavra final na privatização de outras 41 empresas sob controle do Estado.

A guinada se deve à pressa do governo em aprovar o pacote no Congresso até quarta-feira, 24 de janeiro, quando uma greve geral convocada pelos sindicatos - a primeira de seu governo - promete paralisar o país.

Na prática, as concessões pulverizaram parte do impacto que Milei havia obtido com as medidas duríssimas que tomou desde a posse visando a reorganizar a economia argentina.

Entre elas, um ajuste fiscal maior do que os analistas esperavam, reajuste de preços de alimentos, transportes e combustíveis em até 100%, uma forte desvalorização cambial, rápida acumulação de reservas e até um pré-acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI)

Pressionado pela inflação - que atingiu 25,5% em dezembro em relação ao mês anterior, fechando 2023 com alta de 211% -, Milei soltou dois pacotes em poucos dias, incluindo o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), que visa a desregulamentar a economia, alterando 366 leis, além da Lei Ônibus.

“Não negociamos nada, só aceitamos sugestões para melhorar”, chegou a declarar o presidente argentino, na primeira semana do ano.

Redução de superpoderes

A negociação no Congresso está sendo conduzida pelo presidente da Câmara dos Deputados, Martín Menem (do mesmo partido de Milei), pelo ministro do Interior, Guillermo Francos, e pelo assessor presidencial Santiago Caputo com três partidos de oposição moderados, incluindo a tradicional União Cívica Radical (UCR).

Na redação original da Lei Ônibus, Milei receberia “superpoderes” delegados ao Executivo por dois anos, prorrogáveis por mais dois, ou seja, a totalidade do seu mandato.

Agora, o período de poderes especiais foi reduzido para um ano, podendo ser prorrogado por mais um ano – se o Congresso aprovar. Além disso, a lista de emergências previstas também foi reduzida, com Milei perdendo autonomia para legislar sem dar satisfações nas áreas sociais, de defesa e de saúde.

Outras mudanças atingiram pontos importantes do pacote. Uma delas diz respeito à reforma previdenciária para ajustar os salários dos aposentados, que suspendia o regime anterior utilizado pelo governo de Alberto Fernández.

A mudança negociada prevê a atualização dos salários dos aposentados baseada no Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do mês anterior. Ou seja, os aposentados e pensionistas seriam pagos em fevereiro com um aumento de 25,5%, que replica o IPC de dezembro.

Outros pontos que chamam a atenção são a decisão de deixar a reforma eleitoral para ser discutida no Congresso e a promessa de eliminar do pacote o artigo que proibia reuniões de mais de três pessoas em vias públicas, com base na Lei de Trânsito.

Apesar dessa concessão, Milei ainda está jogando duro com os sindicatos, preparando uma série de medidas para perseguir quem aderir à greve geral convocada ainda no fim de dezembro pela Confederação Geral do Trabalho (CGT).

Entre as medidas em estudo está o desconto na jornada de trabalho para funcionários públicos e a criação de um disque denúncia para receber relatos de empresários, comerciantes e trabalhadores que se sintam supostamente coagidos a participar da greve.

Na última semana, Milei instou organizações sociais e sindicatos argentinos a pagarem até 56 milhões de pesos (cerca de R$ 320 mil) pelas operações de segurança realizadas durante as manifestações de dezembro, após sua posse.

Resta saber se Milei vai voltar atrás nos próximos dias com essas medidas, para obter maioria no Congresso visando a aprovação da Lei Ônibus.

Afinal, não seria mais a primeira concessão do presidente argentino, que deve fazer muitas outras daqui para frente para se adaptar ao jogo político que tanto despreza.