A eleição do economista ultraliberal Javier Milei para a presidência da Argentina no domingo, 19 de novembro, vencendo o candidato peronista e atual ministro da Economia, Sergio Massa, por uma margem surpreendentemente alta após uma campanha polarizada – 55,6% dos votos para o eleito contra 44,3% do governista – tem vários significados e uma certeza: o mergulho da Argentina no desconhecido.

Milei, um economista de cabelos desalinhados que se autointitula anarcocapitalista, entrou na política há dois anos e marcou sua campanha com propostas radicais para salvar a economia do país, mergulhada na pior crise econômica em 32 anos, com inflação de 140% ao ano, sem reservas cambiais e com o peso, a moeda local, perdendo metade do valor nos últimos dois anos.

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed acreditam que para a Argentina entrar na rota do crescimento é preciso restabelecer o equilíbrio fiscal, desvalorizar o câmbio e corrigir preços de tarifas subsidiadas. Tudo de forma urgente e direta.

O problema é como, pois Milei vai precisar de apoio da “casta”, como se refere ao establishment político que tanto demonizou ao longo da campanha.

O partido de Milei tem apenas 38 deputados (cerca de 20% da Câmara) e 8 senadores (10% do Senado). Mesmo recebendo apoio da coalização de centro-direita que inclui o ex-presidente Mauricio Macri, o presidente eleito da Argentina está longe de ter maioria no Congresso.

Milei terá também de buscar apoio de governadores e de sindicatos para levar adiante suas propostas, algumas delas radicais. O candidato ultraliberal se elegeu prometendo reduzir a zero a influência do Estado na economia, fechar o Banco Central, dolarizar a economia e privatizar estatais.

“Ninguém gosta de caminhar rumo ao desconhecido”, afirma o economista Alberto Ramos, diretor do grupo de pesquisa macroeconômica para América Latina do banco Goldman Sachs, referindo-se ao sentimento de desconfiança dos argentinos em relação a Milei. “Mas quando a certeza do conhecido, como Massa, te leva a uma situação muito ruim, é normal você decidir tomar risco.”

O drama argentino vem de longa data. Nos últimos 50 anos, o país passou por nada menos de 12 planos de estabilização econômica. Só durante a gestão Massa, a inflação duplicou, o preço do dólar paralelo quadruplicou e mais quatro milhões de argentinos caíram na pobreza, que hoje atinge 43% da população.

Os números finais da votação reforçam o voto útil em Milei. No primeiro turno, ele obteve 30% dos votos. Boa parte dos mais de 25% de votos restantes, agregados no segundo turno, veio de eleitores que, em vez de aderirem ao seu projeto, rejeitaram o de Massa.

Privatização da YPF

Milei até moderou seu discurso de vitória no domingo, deixando de citar algumas de suas promessas. Mas, numa prova de que não vai abrir mão de suas ideias, nesta segunda-feira, 20 de novembro, em entrevistas a rádios locais, voltou a retomar as promessas de fechar o BC e dolarizar a economia “quando der”.

De quebra, prometeu extinguir ministérios e privatizar a TV estatal e até a YPF, gigante de petróleo que havia sido reestatizada em 2012 pela então presidente e atual vice Cristina Kirchner.

A privatização da YPF não repercutiu no mercado financeiro local porque é feriado na Argentina nesta segunda-feira. Mas o papeis da YPF negociados na Bolsa de Nova York valorizaram mais de 30%. Por sinal, o Global X MSCI Argentina ETF, índice que acompanha uma cesta de papéis de companhias argentinas, saltou até 13% nos EUA.

Para Andrés Borenstein, economista-chefe da consultoria EconViews e professor da Universidade de Buenos Aires e da Universidade Torcuato Di Tella, o chamado “caminho desconhecido” começa com duas escalas.

A primeira diz respeito ao curto período de transição entre o fim do atual mandato do governo do presidente argentino Alberto Fernández e a posse de Milei, em 10 de dezembro.

“A transição não será simples, o governo deu início a um pequeno ajuste cambial na semana passada, mas o ritmo a partir de agora é uma incógnita”, diz Borenstein. Segundo ele, na terça-feira o governo atual realiza um leilão de títulos.

“Como o BC e o Tesouro vão gerar confiança para que os bancos participem do leilão? Ninguém sabe e Milei não poderá detalhar seus planos até tomar posse”, acrescenta, pois é dado que o atual governo não deverá facilitar essa transição.

O segundo passo do caminho desconhecido – como Milei vai atuar após a posse – também está cercado de mistério. O plano de estabilização, na opinião dos dois economistas, não pode esperar.

“A crise econômica deteriorou tanto que a estratégia de adotar medidas graduais para resolvê-la não vai funcionar”, afirma Ramos, do Goldman Sachs, lembrando que o gradualismo no ajuste foi o que fez minar o governo Macri.

Segundo Ramos, o governo deve soltar uma terapia de choque com dupla ação, para promover um ajuste fiscal e desvalorização do câmbio. “Tem de ser estrutural e factível, quando isso ficar claro, o governo deve começar a remover os controles financeiros, cambiais, de capital e adotar uma estratégia abrangente para corrigir as tarifas desalinhadas”, diz.

Medidas duras

Ramos diz que será preciso reduzir subsídios (que correspondem a 2,5% do PIB), corrigindo logo as tarifas de ônibus e energia, mais desatualizadas, e cortar os gastos públicos. “Se o governo não cortar as despesas, a reação vai ser ruim: o gasto público e o desequilíbrio fiscal estão na raiz dos problemas macroeconômicos da Argentina”, diz o economista do Goldman Sachs.

Borenstein, que foi economista-chefe do BTG Pactual na Argentina entre 2014 e 2020, sugere um plano de estabilização clássico, semelhante ao Plano Real brasileiro, com a adoção da URV, em 1994.

“Seria um ajuste com um componente bem ortodoxo, com a queda do déficit até atingir o equilíbrio fiscal, tendo como segundo componente o ajuste cambial, com uma grande desvalorização”, diz Borenstein, citando os 20 tipos de câmbio existentes na Argentina.

Borenstein observa que a dificuldade maior do governo não será técnica, pois Milei sabe o que tem de fazer, mas sim de governabilidade: como obter apoio político e social para o plano andar.

“Isso implica que o ministro da Fazenda seja alguém com credencial e experiência política para não dizer simplesmente que vai perseguir superávit, vai precisar dizer como”, diz.

O equilíbrio fiscal, de acordo com o acadêmico argentino, é o primeiro a ser perseguido. Segundo ele, diferentemente do Brasil, a Argentina não tem acesso ao mercado de dívida. Com isso, o déficit tem sempre de ser financiado com emissão monetária.

“Se conseguir transmitir com credibilidade que não tem mais déficit (e, portanto, emissão monetária), a expectativa de inflação tende a cair”, observa. De acordo com Borenstein, a Argentina tem grande vencimento da dívida apenas em 2025. A estratégia é convencer o mercado que o país terá acesso a capital novo em dois anos.

“Mas, para isso, precisamos eliminar o déficit primário (antes de juros); isso seria suficiente para fazer o roll over da dívida”, afirma Borenstein, lembrando que a proposta de Milei de renegociar a dívida é parecida com a que propõe o FMI. “Vai ser uma discussão eminentemente técnica, não política.”

Os dois economistas concordam que um ajuste é factível, mas não será fácil. “Milei é impulsivo e tem ideias extremas, o que vai gerar conflitos políticos e sociais, mas não há tempo a perder”, diz Ramos.

Borenstein prevê que, “num cenário otimista”, com um ministro da Economia com experiencia política e comunicação moderada, é possível começar a obter resultados positivos em seis meses.

“A inflação deve continuar subido mais cinco meses, começando a cair na segunda metade do ano próximo”, prevê. O equilíbrio fiscal pode ser atingido em até um ano, dependendo do ritmo de reformas.

“As privatizações certamente vão gerar polêmica, assim como o corte de subsídios, que tem muita resistência”, diz o economista argentino.