A economia argentina atravessou um duro baque, com a perda do poder de compra elevando o índice de pobreza para mais da metade da população, reflexo das medidas implementadas pelo presidente Javier Milei para conter a inflação. No entanto, os sinais de uma rápida recuperação da atividade local têm chamado a atenção de empresários brasileiros, que buscam se reposicionar para aproveitar a retomada do país vizinho.
As projeções para o PIB de 2024, revisadas no último Levantamento de Expectativas de Mercado do Banco Central da Argentina, passaram de uma queda real de 3% para 2,6%, sustentadas por um prognóstico de crescimento de 0,9% no quarto trimestre, dando continuidade à recuperação iniciada no trimestre anterior. Para 2025, a expectativa é de um aumento de 4,5% no PIB, com a inflação desacelerando de 117,8% para 25,9%.
Uma das empresas que se prepararam para um cenário mais positivo em 2025 é a operadora de turismo CVC. Com 25% de sua receita vinda da Argentina, o grupo bateu recorde de aberturas de lojas no país em 2024, inaugurando 42 novos pontos de venda da Almundo – cerca de um terço do total de unidades no início do ano.
“Nós acreditávamos muito no sucesso dos planos econômicos de Milei e decidimos colocar o pé no acelerador”, afirma Fábio Godinho, CEO da CVC, ao NeoFeed.
Segundo o executivo, um dos fatores que possibilitou a expansão foi a desregulamentação do setor de agências de viagem. “Antes, havia uma burocracia enorme para abrir uma nova agência. Pelo processo antigo, acredito que não teríamos aberto nem dez lojas.”
Mesmo enfrentando um ano desafiador em 2024, devido aos efeitos colaterais das políticas de Milei, Godinho relata que a demanda se manteve acima do esperado. “Geramos mais de R$ 30 milhões de Ebitda. Dentro do que esperávamos, foi um ano muito bom. Poderia ter sido muito pior. Em 2025, certamente, todos os trimestres serão melhores que os de 2024.”
Godinho também destacou o fenômeno da “plata dulce”, usado para descrever as melhores condições cambiais no país. Com a taxa de inflação mais do que compensando a desvalorização do câmbio, o executivo afirma ter aumentado significativamente a demanda de argentinos por viagens internacionais. “Porto de Galinhas está lotado de argentinos, porque voltaram a ter poder aquisitivo em dólar. O argentino adora viajar e 90% é para fora do país.”
Apesar das perspectivas otimistas, Godinho destaca que a empresa, assim como outras que operam na Argentina, ainda enfrenta dificuldades para repatriar dividendos – resultado de uma política de Milei para estabilizar o câmbio. “É o que está faltando. Mas acreditamos que isso deve se normalizar ainda neste ano ou em 2026. Hoje, o lucro fica na Argentina. Temos estratégias para sacar, mas elas se baseiam nos resultados de anos anteriores. Existem algumas regras, não é completamente livre.”
As restrições cambiais foram, inclusive, um dos fatores que afastaram empresas brasileiras do mercado argentino. Foi o caso da Cambuci, dona das marcas Penalty e Stadium, que encerrou suas operações comerciais no país em outubro de 2023. A exigência de licenças para a importação de produtos dificultou o processo, enquanto o fechamento do câmbio por 180 dias para remessas financeiras exigia um capital de giro significativo – algo complexo para a indústria.
Ainda assim, a Cambuci mantém um escritório de contabilidade no país, permitindo reativar suas operações completas em cerca de 30 dias, caso necessário. O NeoFeed apurou que a companhia voltou ao mercado argentino por meio de um distribuidor local, e o negócio está avançando bem, embora ainda não esteja no ponto ideal para um retorno pleno.
Sinais de aumento na demanda também já são visíveis. A CCM Indústria, principal fabricante brasileira de fraldas, relatou ao NeoFeed ter fechado recentemente dois contratos de exportação para a Argentina. O comprador é uma fabricante tradicional que não conseguiu atender ao aumento de pedidos.
Rodrigo Zerbini, CEO da CCM, explica que os contratos envolvem o fornecimento de fraldas para adultos, que têm preços mais altos na Argentina e são acessíveis apenas para consumidores de maior poder aquisitivo. O acordo prevê a entrega de 1 milhão de fraldas adultas tradicionais e 250 mil pants com a marca do cliente local, representando cerca de 5% da produção da CCM. “Estamos prospectando mais dois negócios no país, um deles para distribuição direta com marca própria.
A CCM, dona das marcas Confort e Estrelinhas Baby, investiu R$ 200 milhões recentemente para ampliar sua capacidade produtiva. A iniciativa faz parte de sua estratégia para conquistar maior participação no mercado sul-americano e expandir seu EBITDA de R$ 750 milhões para R$ 1 bilhão até 2026.
Segundo Zerbini, a demanda dos fabricantes argentinos reflete a defasagem tecnológica da indústria argentina, decorrente de investimentos insuficientes nos últimos anos. “É um mercado em que a barreira de entrada é o Capex. Estamos falando de máquinas que custam até US$ 12 milhões.”
Relação em ascensão
Embora 2024 tenha encerrado com retração, os volumes transacionados entre Brasil e Argentina cresceram abruptamente no fim do ano. Dados da Secretaria de Comércio Exterior mostram que as exportações para a Argentina aumentaram 55,4% em dezembro, enquanto as importações subiram 40%. No acumulado do ano, as exportações recuaram 17,6%, mas as importações cresceram 13,2%.
Lia Valls, pesquisadora associada do FGV Ibre e professora da UERJ, destaca a relevância da relação comercial entre Brasil e Argentina, mas adverte que ainda é cedo para falar em uma recuperação sustentada.
“Há tempos, vemos uma redução na participação da Argentina em nossa balança comercial devido à situação precária de sua economia. As exportações para o país, que já representaram mais de 10% das vendas brasileiras, hoje oscilam entre 5% e 6%, ou menos”, aponta Valls. “O aumento no fim de 2024 não necessariamente sinaliza um crescimento duradouro.”
Do lado argentino, o Brasil segue como principal parceiro comercial, superando gigantes como China e Estados Unidos. Em novembro, as exportações da Argentina para o Brasil alcançaram US$ 1,2 bilhão, quase o dobro dos US$ 680 milhões destinados aos EUA. As exportações para o Brasil cresceram 39,3% em dólares, enquanto as importações de produtos brasileiros saltaram 31,3%, superando o volume importado da China.
“O comércio entre Brasil e Argentina depende muito do crescimento de ambos os países. A Argentina ainda precisa muito do mercado brasileiro, e uma estabilidade maior pode impulsionar esses números”, conclui Valls.