Câmbio valorizado, juros altos e uma estrutura tributária muito ruim para o setor produtivo. A combinação desses fatores explica o baixo desempenho da economia brasileira na última década, afirma o economista Nelson Marconi, coordenador do Fórum de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e professor visitante da Universidade Harvard.
Em entrevista ao NeoFeed, Marconi argumenta que esse desequilíbrio acaba gerando burocracia, dificuldade de fazer negócios e insegurança jurídica. “Se determinados indicadores não estão adequados, é difícil obter crescimento sustentável” afirma Marconi, responsável pelo programa de governo do candidato Ciro Gomes (PDT) na última campanha presidencial.
Sobre o governo Luiz Inácio Lula da Silva, ele criticou a demora da equipe econômica em anunciar o arcabouço fiscal. “Deveriam ter preparado as medidas durante o período de transição e anunciado o arcabouço no primeiro dia da gestão Lula, em 2 de janeiro”, diz Marconi.
Com isso, em sua visão, o governo iniciaria seu mandato com o desenho da reforma tributária mais avançado, o que ele considera fundamental para obter o aumento de receita que o arcabouço precisa para dar certo.
Marconi não alivia nas críticas ao Banco Central, por insistir numa taxa de juros a 13,75% ao ano. “Nossa taxa de juro real é a mais alta do planeta e não temos a economia mais desequilibrada do mundo que justifique esses juros”, diz.
No entanto, mantém otimismo para o futuro. Elogia o crescimento do mercado de capitais, essencial para investir em infraestrutura, e vê com bons olhos a política de industrialização do novo governo, chamada de “neoindustrialização” pelo vice-presidente e ministro Geraldo Alckmin.
Mas adverte: “Se o Brasil continuar com os juros na estratosfera e o governo deixar a moeda apreciar, não tem plano de desenvolvimento industrial que sobreviva”, diz. Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
A economia brasileira cresceu em média apenas 0,6% ao ano na última década, bem abaixo da média dos países emergentes, que foi de 4%. Quais foram as principais causas dessa estagnação?
São várias causas, mas vou citar uma, de ordem macroeconômica: se determinados indicadores não estão adequados, é difícil conseguir crescimento sustentável. Mesmo que se invista em educação ou o governo adote uma política de crédito ou industrial, um eventual desequilíbrio macroeconômico afeta todas as áreas, indistintamente. Esse desequilíbrio está bem fundamentado no câmbio apreciado - que não tem mais, mas tivemos muito tempo -, juros altos e uma estrutura tributária muito ruim para o setor produtivo. Isso acaba gerando burocracia, dificuldade de fazer negócios e insegurança jurídica.
Falta ao Brasil um planejamento de longo prazo?
Os governos sempre atuaram muito mais com políticas pontuais, ou datadas, mas sem visão de longo prazo. Depois da época dos governos militares, o país não teve mais planejamento, foi se esvaziando, junto com essa pauta de redução do papel do Estado na economia.
Por quê?
Se o Estado não tem papel importante, não precisa ter planejamento – é a ideia de deixar que o mercado se acerta. O mercado é fundamental, mas não se acerta sozinho.
Você é um crítico da atual taxa de juros. Onde o Banco Central errou a mão: na dose da elevação da Selic ou na demora em começar a baixá-la?
Primeiro é preciso lembrar que o BC não tinha como manter uma taxa de juro no patamar de 2%, como na época da pandemia, porque estava resultando numa taxa de juros real negativa. Mas sair de 2% para 13,75% é uma senhora aceleração. Para isso ser justificável, precisaríamos ter uma inflação que fosse baseada em pressões de demanda, o que não foi o caso. Tínhamos uma taxa de desemprego muito alta, a economia não estava crescendo – expandiu muito pouco no ano passado, declinando em dezembro. Ou seja, não havia pressão de demanda, e sim do lado dos preços dos combustíveis, dos alimentos, ou externas, de logística ou de insumos.
"O problema é que esse tipo de inflação, que não era causado pelo excesso de demanda, não se resolve com aumento dos juros"
Subir tanto a Selic foi um erro?
O problema é que esse tipo de inflação, que não era causado pelo excesso de demanda, não se resolve com aumento dos juros. Tanto que a inflação caiu antes do efeito da taxa de juros porque o governo freou o aumento dos combustíveis, os alimentos pararam de subir tanto no mercado interno quanto externo e isso ajudou a controlar a inflação. Temos hoje uma inflação rodando na casa dos 5% e uma taxa de juros de 13,75%. Não tem justificativa. Portanto, os juros nem deveriam ter subido tanto nem ter ficado tanto tempo nesse patamar.
A pressão do setor de serviços não entra nessa conta?
O setor de serviços tem um movimento inercial que vem do aumento de outros custos, um pouco ligado à retomada da economia. Mas a inflação está caindo aos poucos. Se a inflação sai de um patamar tão alto é preciso mais tempo para convergir para a meta. Fazer esse movimento muito rápido significa aumentar muito os juros sem ter o resultado esperado, porque a inflação não é de demanda.
O problema então é a meta de inflação?
Temos uma meta de 3,25%, sendo que a inflação subiu no mundo todo – os outros países estão com inflação mais alta que a nossa. Para convergir para a meta tão rápido precisa compensar muito a inflação de determinados serviços, de bens comercializados. Eles terão de cair muito para compensar os preços que vêm de fora. Como temos uma inflação importada mais alta, atingir uma meta mais baixa passa a ser algo irrealista. Na verdade, nossa meta de inflação é baixa. O problema é que quando se baixa a meta, como fizeram no passado, para subir de novo não é fácil.
O presidente do Banco Central diz que a inflação tem desacelerado de forma lenta, mas com os núcleos ainda altos. Por que a inflação não cede, mesmo diante uma taxa de juros tão elevada?
No caso do Brasil, há algumas características importantes. Olhando no longo prazo, a produtividade da economia não é alta. Além disso, temos um histórico de inflação inercial e os mecanismos de correção se mantiveram. A indexação é um deles: de tarifas de serviços públicos, de aluguéis, de mensalidades escolares, além de uma indexação, ainda que não explícita, de salários.
Quais são os efeitos colaterais mais danosos à economia com juros a 13,75%? Há um impacto maior com juro real em 8%?
Sem dúvida, é o juro real mais alto do planeta. E não temos a economia mais desequilibrada do mundo para justificar esses juros. O primeiro efeito desses juros, teoricamente, recai sobre os investimentos. Supondo que um empresário tenha de tomar dinheiro emprestado para fazer investimento, o custo dele não é o da taxa básica, da Selic (13,75%), é muito maior, entre 20% e 30% ao ano. Qual negócio, dentro da legalidade, que dá 30% de retorno? Para as famílias, o custo também é muito alto. As que já vinham endividadas vão rolando essas dívidas, e estamos falando de cartão de crédito. O argumento de que as famílias se endividaram demais não serve – o endividamento se dá para consumo corrente, do dia a dia, não para compras supérfluas.
Qual sua avaliação do arcabouço fiscal? É possível detectar alguma armadilha para o governo no detalhamento das medidas propostas?
O arcabouço depende do aumento das receitas. O governo colocou uma trava no aumento da despesa que está vinculada ao crescimento da receita, o que é bom. O problema, na minha opinião, é que o governo deveria ter anunciado o arcabouço no primeiro dia de mandato, preparando e discutindo as medidas durante o período de transição. Aí já começava o governo com uma reforma tributária melhor desenhada.
Faz diferença anunciar agora ou no primeiro dia de governo?
Com certeza, mesmo porque agora vai ficar refém de uma CPI (sobre os ataques de 8 de janeiro), que vai atrapalhar a votação do arcabouço. Ok, ninguém esperava os ataques aos Três Poderes, mas vale lembrar que o governo, em janeiro, cogitou em apresentar o arcabouço seis meses após a posse.
"Essa reforma tributária que está para ser votada, sobre serviços, não é para aumentar a receita, e sim para racionalizar o sistema"
Mas qual é o impacto dessa demora?
Essa reforma tributária que está para ser votada, sobre serviços, não é para aumentar a receita, e sim para racionalizar o sistema. Mas tem outra perna que falta, que é a reforma do imposto de renda, que vai abordar lucros de dividendo, tributação sobre patrimônio e de fato gerar receita, de forma consistente. O problema é que o governo ficou nesse meio-tempo correndo atrás de outras receitas, tentando taxar comércio e jogos eletrônicos, e parece que não ter disposição política de atacar onde precisa: a reforma sobre a renda e o patrimônio.
Existe uma preocupação com o crescimento da dívida pública, pois acaba impactando na expectativa de inflação e juros. O arcabouço vai facilitar o controle do crescimento da dívida?
Se o governo conseguir gerar resultado primário, ajuda a interromper a trajetória de crescimento da dívida. Existe um outro componente que pressiona a dívida que é a própria despesa com juros. Assim, se o governo gerar superávit primário de 0,5% do PIB, mas gastar 4% do PIB em juros, vai ter resultado nominal negativo e pressão sobre a dívida. Então não dá pra dissociar uma coisa da outra. O problema é que, se o governo não aumentar a receita, vai ter de cortar na despesa. Se recuperar a receita, auxilia sim na trajetória da dívida e deixa claro para onde vai. Mas se a despesa com a dívida continuar correndo solta, não tem como.
"O desenho está correto, mas a reforma (tributária) está incompleta"
A reforma tributária, como está sendo discutida, é suficiente para reorganizar de forma satisfatória nosso sistema tributário?
O modelo é razoável quando se discute a tributação de bens e serviços, visando simplificá-lo. Minha preocupação é que a reforma tributária é incompleta. Se a o projeto de lei disser que a alíquota tributária média do IVA for de 25% ou 26%, o governo terá problema, pois é a alíquota que a população já paga. Por isso é importante ter junto com a reforma tributária de serviços a reforma de impostos sobre a renda. Fica mais fácil explicar que quem vai pagar mais são os mais ricos e a tributação sobre o lucro das empresas vai diminuir. Sabemos que politicamente é difícil votar o pacote inteiro, mas a resistência que vai ter ao anunciar a alíquota será muito alta. O desenho está correto, mas a reforma está incompleta.
O ministro Alckmin anunciou um programa de neoindustrialização. O objetivo é criar políticas públicas para o setor com foco em sustentabilidade, descarbonização, inclusão social e tecnológica. Qual sua avaliação?
Esse projeto tem um conteúdo importante, que é valorizar a pauta energética. Temos uma matriz energética limpa, mas precisamos reforçar isso, o que nos dará vantagem comparativa. Investir em tecnologia é essencial, seja em biotecnologia, semicondutores, nas áreas farmacêutica e de saúde. O desenho é bom. Mas é preciso criar um programa com metas muito claras e prazos definidos – impacto sobre emprego, incorporação de tecnologias e etc. –, senão o programa fica perdido. A meta principal, na minha opinião, é exportar. Se o Brasil continuar com os juros na estratosfera e o governo deixar a moeda apreciar, não tem plano de desenvolvimento industrial que sobreviva.
O mercado de capitais cresceu muito no Brasil nos últimos anos. Os investimentos privados de longo prazo em saneamento e concessões refletem esse aumento do capital privado. Qual o papel do BNDES neste novo cenário?
Acho bastante satisfatório esse crescimento do mercado de capital privado. Isso se deve às concessões e PPPs. Mas o BNDES tem que continuar tendo papel importante em fomentar o desenvolvimento. Os setores mais novos, que precisam crescer na frente da demanda, cujo risco é grande para atrair investimento privado - como os que envolvem inovação ou não estão consolidados no mercado -, vão depender do BNDES.