A reforma tributária entrou na fase decisiva com a entrega do parecer final dos dois grupos de trabalho (GTs) criados em maio, na Câmara dos Deputados, com os principais pontos de regulamentação do novo modelo tributário.

Horas antes do fim do prazo previsto, na quarta-feira, 3 de julho, várias questões ainda estavam pendentes, com os principais setores da economia fazendo pressão sobre os deputados envolvidos nos grupos de trabalho para tentar garantir alíquotas mais baixas para seu segmento.

O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), decidiu discutir o relatório final dos dois projetos de lei complementar (PLP) com os líderes das bancadas partidárias na tarde de quarta antes de divulgar oficialmente o texto na manhã do dia seguinte, 4 de julho.

Um deles é o PLP 68/2024, o mais importante, que institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS). O outro é o PLP 108/2024, que trata da regulamentação da atuação do Comitê Gestor do IBS e da distribuição das receitas entre os entes federativos.

O modelo de relatoria colegiada, com dois grupos de trabalho (compostos cada um por 7 deputados, 1 por cada partido político com representação na Câmara), deu celeridade ao processo e, ao mesmo tempo, ajudou a “blindar” os GTs, pois não permitiu a inclusão de emendas.

Lira pretende iniciar a votação das propostas no plenário na próxima semana, pois trabalha com o prazo máximo de 18 de julho para aprovação da regulamentação da reforma tributária, antes do início das férias legislativas.

O que está em jogo é a essência da reforma tributária – a definição de tributação dos produtos sob o novo imposto unificado, chamado de IVA (Imposto sobre Valor Agregado), sobre o consumo de bens e serviços, com base na Emenda Constitucional 132, aprovada pelo Congresso em dezembro.

Assim, nas discussões para dar menor tributação a determinados produtos é preciso elevar a alíquota de outros – uma vez que o acordo é de não elevar a carga tributária total existente, mantendo a alíquota do IVA no máximo em 26,5%.

Com isso, dois temas concentraram a pressão de lobbies na reta final: cesta básica e imposto seletivo. O agronegócio, por exemplo, tentou incluir carnes, aves e suínos na lista da cesta básica com impostos zerados.

Na outra ponta, setores submetidos ao IS – o chamado “imposto do pecado”, com sobretaxa aos produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente – lutaram para serem excluídos da relação, como a indústria de alimentos ultraprocessados.

O lobby de setores ligados à cesta básica acabou gerando discussões no grupo de trabalho para aumentar a lista de produtos passíveis de serem sobretaxados pelo imposto seletivo, como forma de compensação. Isso abriu caminho para incluir na lista do IS as apostas esportivas online, as chamadas bets, para contrabalançar a isenção de carnes.

Difícil acomodação

Para Felipe Salto, economista-chefe Warren Investimentos e um crítico à maneira como foi conduzido todo o processo de reforma tributária, o desfecho das discussões sobre a regulamentação reforçou a certeza de que é impossível acomodar tantos interesses.

“A verdade é que precisaremos ter uma alíquota do IVA gigantesca ou um imposto seletivo cada vez maior”, diz Salto ao NeoFeed. “E isso era previsível, agora, quem pariu Mateus precisa embalá-lo, mas não saberá como.”

No caso da cesta básica, chamou a atenção a discussão sobre a isenção de tributação de proteínas animais, como carne e frango. Na proposta original do governo federal, as proteínas fazem parte da chamada “Cesta Básica Estendida”, com desconto de 60% do IVA, resultando em alíquota de 10,6% - inferior à média atual, de 12,7%.

Para as famílias com renda per capita de até meio salário-mínimo, inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal e eletivas para o cashback - devolução de impostos criados pela reforma tributária -, a alíquota seria menor, de 8,6%.

O lobby para incluir a carne na lista de isenção total de impostos da cesta básica ganhou tração após declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Depois de prometer durante a campanha presidencial que os pobres iam “comer picanha” no seu governo, Lula voltou a criar polêmica na terça-feira, 2 de julho, ao defender separar o imposto cobrado pela nova reforma tributária pelo tipo de carne: a de primeira, como a picanha, pagaria mais impostos para aliviar a taxação do frango, mais consumido pelas classes populares.

“Não dá para separar a picanha de outros cortes, como a carne de pescoço, os mercados geralmente compram a peça inteira, ou seja, não faz sentido colocar uma alíquota cheia na carne nem isentá-la por inteiro de imposto na cesta básica”, afirma o tributarista Bruno Checchia, do escritório Bichara Advogados.

Segundo ele, a força do agronegócio no Congresso permitiu prever até o último momento a inclusão de bovinos e talvez as aves na faixa de alíquota zero. “Aí surge a indagação: por que não incluir o pescado e os suínos? Esse é o problema, pois vão sendo criadas exceções que ferem o princípio de isonomia e podem acabar judicializando a questão no futuro”, advertiu.

A isenção total de imposto das carnes deve ter um impacto de 0,57 ponto porcentual na alíquota padrão do IVA, que iria a 27,1%.

A briga entre os setores incluídos no imposto seletivo foi semelhante. Além dos vilões de sempre, cigarro e bebidas alcoólicas, sobretaxados pelo IS em vigor na maioria dos países, houve forte pressão de lobbies para excluir os alimentos ultraprocessados.

Luísa Macário, tributarista do escritório Ballstaedt Gasparino Advogados Associados, adverte que um dos principais argumentos alinhados por setores que visam a redução de alíquota é o impacto econômico de uma eventual sobretaxação. Ela cita o exemplo dos alimentos ultraprocessados.

“Há muito apoio à sobretaxação dos ultraprocessados, mas um estudo recente da Fundação Getúlio Vargas previu impactos de tributação elevada em produtos adoçados, entre eles queda de produção total, redução de empregos, Produto Interno Bruto (PIB) e de arrecadação tributária”, diz a tributarista.

Segundo ela, a questão é complexa: “Esses produtos ultraprocessados são uma das principais fontes de alimentação para segmentos pobres da população.”

Sede de arrecadação

Não bastasse o lobby de diversos segmentos, o próprio governo federal passou a defender taxação maior de alguns setores de olho num aumento de arrecadação.

A indústria automobilística, por exemplo, virou alvo: após ser enquadrada no “imposto do pecado” com os automóveis a combustão e híbridos, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), chefiado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, defendeu que os carros 100% elétricos, movidos exclusivamente a bateria, também sejam sobretaxados.

O Ministério da Fazenda, por sua vez, cogitou taxar os fundos de investimentos imobiliários (FIIs) e fundos de investimentos em cadeias industriais (Fiagros), que hoje são isentos. A proposta acabou deixada de lado, pois o setor da construção civil já terá aumento da carga tributária entre 8% e 10% pela proposta da reforma e uma nova taxação sobrecarregaria o segmento.

A inclusão de mineração, minério de ferro e petróleo na lista do imposto seletivo - iniciativa do governo federal- claramente teve  objetivo arrecadatório.

Independentemente do relatório final, os especialistas consultados pelo NeoFeed fizeram um balanço do atual processo de regulamentação da reforma tributária.

Luísa Macário, do escritório Ballstaedt Gasparino, acredita que a inclusão de muitos itens na lista de imposto seletivo deve impactar no aumento de preços dos produtos.

“O lado bom da reforma tributária é a redução do custo das empresas, que gastam muito para administrar o pagamento de tributos e agora, sob um regime mais simples, terão custos menores”, afirma.

Checchia, do escritório Bichara Advogados,  por sua vez, elogia a iniciativa do cashback, que afirma ser um instrumento moderno, com noção de justiça tributária por beneficiar a população de baixa renda. Mas tem dúvidas se poderá ser operacionalizado.

“O governo federal tem a lista de pessoas inscritas no CadÚnico e que podem ser atingidas pelo benefício, mas no dia a dia, quando uma pessoa com direito a cashback for ao mercado, ainda não está claro como ela poderá resgatar esse dinheiro”, disse o tributarista.

No entanto, para Salto, da Warren, a reforma tributária pensada anos atrás foi totalmente desfigurada. “O que se aprovou e, agora, na regulamentação,  vai ficando mais claro, é uma reforma que abandona o regime atual, que tem muitos problemas, para apostar num mergulho no escuro, sob uma gestão incerta e obscura de uma entidade que ninguém sabe como funcionará chamada Comitê Gestor do IBS", adverte.

Salto afirma que sempre defendeu uma reforma incremental, com o ICMS migrando para o destino e uma discussão a sério sobre os critérios de creditamento. Mas o resultado foi diferente: “Viraram de cabeça para baixo o capítulo de finanças e tributação da Constituição Cidadã."